Capítulo 5

20 2 0
                                    


Maria Clara sempre fora gordinha, o que antes era motivo de beleza e sinal de saúde, ao crescer tornara-se um problema. As dobras antes amadas no bebê, causavam assaduras, deformavam sua silhueta. A garota procurava nos livros uma desculpa para não ter que interagir com as pessoas a sua volta, e por vezes pegava-se devaneando minutos a fio em uma mesma página. As lentes grossas escondiam seus olhos, diminuindo-os a duas ameixas acastanhadas. Sua mãe também era obesa, por conta do peso fraturou o calcanhar e acabou acamada. Há um ano só fazia comer e reclamar. Ninguém no colégio conhecia a vida daquela estudante, seu pai prendia-se a compulsão de continuar alimentando a esposa, compensando assim sua falta como marido. As filhas assumiram os afazeres domésticos, e os livros permitiam alguma imersão para longe daquele ambiente.

Maria Clara seguia a passos lentos, contava os dias e os meses até a sua formatura. Pretendia cursar farmácia em uma cidade longe dali. Seus planos que antes a motivavam, tornavam-se cada vez mais fugazes. Suas notas em química eram medianas, os professores diziam que ela precisaria se esforçar mais, muito mais. Estava no limite quando descobriu uma folha dobrada no lixo da sala de aula. O papel circulara durante toda a manhã, alguns rabiscavam, outros apenas riam e passavam adiante. Não chegou em suas mãos, como de costume. Por mais que evitasse confrontar aquelas verdades, desta vez foi vencida pela curiosidade. O papel não continha um desenho de uma baleia com o seu nome, mas sim uma lista classificando as meninas mais sexys da sala. Todas estavam ali, abaixo delas algumas professoras e funcionárias do colégio, no verso, após as palavras cabra e vaca, encontrava-se o nome de Maria Clara. Preferiam ter com os bichos do que deitar-se com ela. Toda sua doçura e submissão não a livravam de tamanha afronta. Correu até um banheiro afastado e chorou, tudo o que guardara explodia em soluços incontroláveis. Ninguém reparou no seu sumiço durante a próxima aula.

O fato por ela relatado ocorrera há duas semanas, desde então ela vinha ponderando a melhor forma de deixar de existir. Pesquisou em fóruns e blogs, descartou morrer enforcada, ou atear fogo ao próprio corpo. Lera que cortar os pulsos não era garantia de morte, tampouco se jogar na frente de um carro. Acabaria por ser resgatada, tendo que se submeter a humilhações ou sequelas. Sua mente voltara-se, então, para o método mais pacífico que encontrara. Tomaria todos os antidepressivos da mãe. Duas cartelas bastariam. Planejava fazer isto ali, no banheiro da escola, no penúltimo dia de aula. Trazia consigo os comprimidos e a coragem.

Fiquei atordoada, eu também já havia pensando em suicídio diversas vezes, embora as ideias nunca tivessem ganhado tamanha concretude. Eu simpatizava pela dor daquela garota, ambas enfrentávamos a maldade imotivada daqueles jovens inconsequentes. Nós também não tínhamos noção dos nossos atos. O suicídio poderia ser visto como algo romantizado, ainda que não o fosse. Como mostrar para ela que aquele sofrimento tinha prazo de validade? Que ao nos formarmos estaríamos livres de todas aquelas pessoas? Seria isto verdade ou só uma tentativa de me manter focada e continuar empurrando meus problemas? Eu não saberia dizer,  as palavras saíam desconexas, tropeçava em boas intenções. Era nova e imatura. A sirene tocou e ela voltou para a sua aula de física. Eu liguei para mamãe, ela saberia o que fazer. Nem sempre um ouvinte bastava, algumas vezes atitudes mais incisivas eram necessárias, foi o que mamãe me disse. A psicóloga do colégio chamou Maria Clara, enquanto a coordenadora vasculhava sua mochila em busca dos comprimidos. Toda descrição foi utilizada. Os alunos brincavam que a coordenadora estava em busca de uma coxinha roubada.

Maria Clara recebeu ajuda especializada, não a vi por três semanas. Contou-me que chegou a ficar internada, e que agora fazia acompanhamento com psiquiatra e psicólogo. Ela não guardava rancor por tê-la entregado. O sofrimento ainda persistia, ainda que agora pudesse enxergar que não queria realmente morrer, procurava uma forma de alívio para sua dor. Os medicamentos receitados ajudariam, assim como um acolhimento maior por parte da família. Sua sala fora avisada e os jovens pareceram compreender a magnitude do que faziam. O bullying com ela diminuiu. Não posso dizer o mesmo sobre mim.

Meu nome é Mariane, e as coisas continuam difíceis no colégio. Sigo confiante, só mais um ano e meio e estarei formada, dona de minhas escolhas, com um futuro em minhas mãos. Se a Britney sobreviveu a 2007, eu sobrevivo ao ensino médio.

Uma GarotaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora