Não-me-Esqueças

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     Acordou assustado durante a madrugada. Quando verificou a hora no celular, confirmou que eram 3h da manhã. Na verdade não se surpreendeu, acordar nesse horário se tornara ocorrência recorrente nas últimas semanas, quando o medo e a inquietude se tornaram companhias assíduas em sua cama.

     Sentindo o suor frio que colava os lençóis em seu corpo, fixou o olhar no teto por medo de olhar para o lado. Sabia que na mesinha de cabeceira estariam, mais uma vez, os objetos malditos que assombravam suas noites. Olhou mesmo assim, em um misto de curiosidade mórbida e coragem tola – sentimentos característicos dos desesperados – e teve sua confirmação.

     O porta-retratos. A última foto dela sorrindo. As flores azuis.

     Tudo muito limpo e organizado, ao lado da lâmpada pequena que ela escolhera para o quarto, quase como se arrumado por suas próprias mãos. Fechou os olhos e sentiu o suor frio se renovar sobre sua pele, um calafrio macabro que mais parecia uma carícia de amante.

     Quis gritar.

     Ainda que paralisado pelo terror que o sufocava, quis explodir, atirar os objetos malditos contra a parede e dançar sobre os estilhaços de madeira e vidro. Pensou em incendiar a casa. Se perguntou se precisaria queimar com ela para ter uma noite de paz.

     A verdade é que já tinha tentado de tudo, sem resultado. Perdeu as contas de quantas vezes jogara a moldura no lixo, de quantas vezes tentara destruí-la. Já tinha queimado a foto e as flores, conseguindo apenas que o odor adocicado impregnasse seu quarto por semanas, condenando-o a uma náusea constante que se alojava em seu estômago, junto com o sentimento gelado de terror.

     Pensou em pedir ajuda, mas sabia que ninguém mais acreditaria nele. Exausto, percebeu que uma dormência de sentimentos se espalhava em seu peito. Olhou para as próprias mãos, que não mais tremiam. Bateu uma foto do pequeno altar que se formava espontaneamente em sua cabeceira todas as noites e resolveu pesquisar sobre as flores.

     O resultado da busca foi simples: Miosótis, popularmente conhecidos por "não me esqueças".

     Encarou novamente a foto, o rosto sorridente agora parecia escarnecer. O ódio se reacendeu e ele pensou em sumir com aquele sorriso no tapa, como fizera tantas vezes... Tão logo o pensamento cruzou sua mente sentiu novo calafrio, dessa vez acompanhado de um peso inexplicável sobre seu peito e de amarras invisíveis que lhe restringiam os membros. Sentiu-se sufocar lentamente.

     Quando achou que perderia a consciência, que alcançaria finalmente a paz prometida na morte, o peso foi suspenso e o ar o invadiu dolorosamente. A ardência em seu peito e garganta se refletiram em lágrimas em seus olhos e em um grito mudo de desespero. Aparentemente não merecia a morte.

     Um riso familiar ressoava em seus ouvidos.

     Ela não o deixaria esquecer.

     Resignado, levantou da cama e buscou na escrivaninha um caderno onde registrou sua confissão, incluindo os detalhes de onde escondera o corpo, um relato desesperado da cena que não lhe era permitido esquecer.

     Encontrou um último prazer cruel em descrever a maciez da carne e o cheiro metálico do sangue que o cobriu enquanto abria no meio a mulher que jurou amar e proteger no altar.

     Pontuando o papel com um riso histérico, mal percebeu quando o abridor de cartas lhe furou a garganta, continuou gorgolejando palavras de ódio e de perdão, enquanto o instrumento era devolvido à mesa. Olhou uma última vez para o retrato em sua cabeceira.

     O sorriso dela parecia estar em paz.

Flores AzuisWhere stories live. Discover now