Zorro

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Foi só fechar os olhos e já havia chegado. Estava acostumado com aquela sensação, afinal não era sua primeira vez. Longe disso. Depois de toda a fase de testes e de muitas melhorias, sua invenção não causava mais nenhum incômodo. A viagem era tranquila, instantânea e sem os solavancos do começo. Mal parecia que havia se deslocado. E, a rigor, realmente não havia. Verificou o dispositivo em seu pulso esquerdo e confirmou: estava onde desejava estar. Ou melhor, quando desejava estar.

Olhou ao redor e concluiu que jamais reconheceria aquele lugar se já não soubesse onde estava. Apesar de nunca ter morado naquele bairro, conhecia-o muito bem das constantes visitas aos avós. Lembrar-se desses momentos lhe trouxe uma pontinha de saudade, acompanhada de um breve aperto no coração. Mas teve de frear toda essa torrente nostálgica, pois tinha uma missão a cumprir, e não pretendia gastar ali mais tempo do que fosse necessário.

A falta dos conhecidos pontos de referência o deixou um pouco desorientado. Não havia os grandes edifícios que costumava ver por aquela área. O shopping center a dois quarteirões dali ainda não existia. As ruas não eram asfaltadas. O que se via eram casas, com quintais grandes ou pequenos, algumas lojinhas e carros antigos aqui e ali. Tudo orbitando ao redor de uma simpática pracinha, com bancos convidativos para uma boa conversa, e um espaço para crianças brincarem. Logo ao lado, ficava uma pequena igreja.

Mas àquela hora, nenhuma criança brincava, e ninguém conversava nem rezava. À luz da lua, o único som era dos grilos que se escondiam nas moitas e arbustos espalhados pela rua. Solitário naquele ambiente, o viajante sabia que aquela não era a hora mais adequada para os seus propósitos. Entretanto, esse era um revés que ele já havia previsto. Lamentou, não pela primeira vez, que sua invenção não lhe permitisse determinar a hora exata da chegada. Não era possível precisar o momento, e ainda havia uma série de variáveis nas quais ele teria de trabalhar para aprimorar a viagem.

Andou sobre os paralelepípedos seguindo a rua escura que ladeava a praça. Passou por um poste que lançava uma fraca luz, de maneira que era difícil ver qualquer coisa a partir de certa distância. Provavelmente só conseguiria identificar a lojinha que o pai descreveu quando estivesse muito perto, portanto tentou ficar atento enquanto caminhava. Mas segundo o pai, não havia como se perder. Bastava seguir direto naquela ruazinha e ele encontraria o tal estabelecimento.

Engraçado como as coisas são, pensou. Desde o sucesso de sua invenção, perdeu as contas de quantas vezes convidou o pai para uma viagem. "Já é seguro, os riscos são mínimos", dizia sempre, ao que pai costumava retrucar: "muito obrigado, mas não quero mexer no que já foi tão bom". Não que ele menosprezasse o seu trabalho. Em diversas oportunidades expressou o orgulho de ter um filho inventor. Incentivou-o desde pequeno nos estudos, deu todo o suporte para que trilhasse o árduo caminho da pesquisa científica. E a cada vitória, a cada etapa bem sucedida, a cada prêmio ganho com a gloriosa invenção, o pai estava sempre lá, parabenizando o filho por uma conquista que também era sua.

Entretanto, o pai havia mudado desde a descoberta da doença. Andava cabisbaixo, desmotivado, parecia admitir a derrota. É verdade que o prognóstico não era nada animador desde o início, mas era angustiante para o filho vê-lo daquele jeito, nada podendo fazer para ajudá-lo. Logo ele, acostumado a buscar soluções para os problemas mais complicados, agora se sentia impotente, inútil perante a situação de alguém que tanto ama. Foi por isso que se alegrou com o pedido do pai, por mais surpreendente e inusitado que tenha sido. Finalmente sentia que estava fazendo algo, uma singela retribuição frente a tudo que o pai lhe proporcionou.

Caminhando ao longo da rua, conseguiu distinguir algumas lojas na escuridão, mas nenhuma era a que procurava. Viu um mercadinho, um salão de cabeleireiro, um açougue, um bar. Todos fechados. Ele olhava de um lado a outro da rua procurando a tal loja. Já estava ficando impaciente, quando finalmente a viu. Uma fachada pintada com uma grande variedade de cores, bastante chamativa, mesmo com pouca luz. Era exatamente como o pai a havia descrito. Estava fechada, como esperado, então ele se sentou na calçada, com as costas apoiadas na parede da loja, e aguardou. Ficou observando a rua. Parecia não haver uma só alma viva nas proximidades. Até que isso era uma boa coisa, concluiu. Bem sabia que era aconselhável que a interação fosse a mínima possível para evitar interferências diretas. Nisso o pai tinha razão, era melhor não mexer demais.

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