A Breve Noite da Menina de Cabelos Coloridos

7 0 0
                                    

A rua encontrava-se deserta. Quase. Apenas duas pessoas podiam ser observadas naquele lugar inóspito, uma das quais sou eu mesmo, autor desta singela narrativa; quanto a outra personagem, por enquanto, não revelarei de quem se trata. Ao invés disso, prefiro explicar os acontecimentos responsáveis por me conduzir a inusitada situação que descreverei em seguida. Algum leitor menos arguto poderá se indagar a respeito da primeira frase utilizada; apresso-me em satisfazer sua dúvida: o fato em questão pode ser facilmente explicado – e não causará surpresa a ninguém – pela hora tardia observada nos relógios daquele bairro do Rio de Janeiro, que, diga-se de passagem, era um dos piores locais para se estar às 23 horas de uma terça-feira. Com isso esclarecido, podemos seguir em frente.

Em primeiro lugar, devo dizer que meu nome, bem como outros dados pessoais, será omitido aqui. Prefiro preservar minha identidade e dar espaço para aspectos mais importantes daquela noite. É verdade que eu poderia usar um pseudônimo qualquer, mas faltou-me enxergar tal necessidade. Se quiserem pensar em mim, me imaginem como um mero narrador-observador, cuja única relevância se resume a produzir este relato a partir de meus sentimentos e impressões. A participação que desempenhei nos eventos foi mínima, não sendo eu o pivô de nada, apenas me posicionei de maneira conveniente para a situação... Mas cá estou eu enchendo de caraminholas desnecessárias a cabeça de vocês! Peço desculpas e um pouco de paciência; prometo ser mais organizado na ordem dos fatos daqui em diante. Comecemos de uma vez a história.

O dia iniciara-se como qualquer outro antes dele. Nenhuma novidade, nenhuma excitação. Tratei de cumprir minha rotina de terça, ansioso em voltar para casa, comer e descansar. Um desânimo parecia ter germinado dentro de mim há algumas semanas; agora, seus frutos lânguidos alimentavam minha alma, deixando-a cada vez mais faminta e pesada. Meus passos andavam pelo simples condicionamento a que foram submetidos. Sentia o corpo vazio e melancólico, preso no embalo cotidiano, como pêndulo unido aos ponteiros de um enorme relógio de madeira. Eles eram responsáveis por indicar quanto tempo de existência me restava; quando ambos voltassem a sobrepor, em uníssono, o número 12, meu tempo terreno estaria terminado. Até lá, meu deslocamento jamais mudaria: de um lado para o outro, de um lado para o outro... Achava-me farto dessa nauseante movimentação, de modo que crescia, querendo opor-se ao meu regente, um clamor pela ruptura daquele laço. Porém, arvorou-se tão profunda apatia em mim que era incapaz de me libertar sozinho. Já havia sucumbido ao conformismo, mal sabendo que, ainda naquela noite, viria uma breve liberdade, antes de ser costurado novamente ao relógio.

Por volta das 22 horas, eu estava dentro do metrô, rumo a minha morada, sentado num banco preferencial. Quando, na estação da Cinelândia, entrou uma senhora de bengala e cabelos grisalhos, a força da ética me fez ceder o lugar, tendo em vista a total ocupação tanto dos assentos normais como os destinados para certos tipos de pessoas. Chamei a moça, procurando dar um sorriso agradável enquanto oferecia o lugar. No entanto, a velha lançou um olhar severo, aceitando rispidamente meu gesto, como se eu não devesse nem estar sentado ali em primeiro lugar. Ou, talvez, ela se incomodasse por estar com a idade avançada fisicamente visível, sem quaisquer traços do viço da juventude. Seja como for, empurrei aquela ocorrência para algum recôndito empoeirado da mente; decidi que era melhor mudar de vagão. Comecei a me mover para o extremo norte da locomotiva, cuidando para não cair durante as eventuais sacudidas e freadas bruscas. Quase alcancei a outra ponta até me encostar a uma parte divisória do corpo da serpente mecânica para esperar, pacientemente, a chegada na minha estação. Retirei os fones do bolso e me pus a ouvir música, com o intuito diminuir o tédio da viagem (ah, a praticidade da tecnologia!); absorveram por completo minha atenção as melodias, tanto que olhei sobressaltado ao redor, após vários minutos, temendo perder a descida. Felizmente, meus temores mostraram-se infundados; faltavam apenas três estações para concluir meu trajeto. Por alguma razão desconhecida, virei a cabeça à esquerda, em direção à porta. Nesse instante, avistei aquilo que estava prestes a desregular minha bússola diária.

A Breve Noite da Menina de Cabelos ColoridosWhere stories live. Discover now