O Canto dos Sussurros

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Tamanho era seu contentamento que abriu todos os cofres, arrastou todas as riquezas da casa, e de sua banheira caiam as moedas, pelo assoalho, pelas escadas um rastro de riqueza... tão infinito o momento, e não conseguia parar de jogar as moedas, se banhar em todos aqueles tesouros.

Tal era seu incontentamento e semblante triste que passou pelos dias, banho de prata, banho de ouro, banho de safira e rubi que se sentia apalermada. Precisava de um banho de diamantes para renovar as forças. E mesmo assim, saiu verificando os outros lugares que faltavam, cada um mais suntuoso que o outro.

Pela cidade as pessoas se enfezavam de inveja e sussurravam o quanto a mulher estava rica e sortuda, viam a felicidade irradiando da mulher, e achavam que era a obrigação deles sustentarem os mimos e os luxos da cidade – quão injusto isso.

Sua curiosidade vasculhou cada canto da casa e agora não sabia se ficava triste ou feliz por não ter encontrado nada que incriminasse o marido ou atestasse de onde veio sua riqueza, que foi de encontro a biblioteca. Retirou toda a prata e ouro, alicerces e bijuterias jogando-os e pegando o primeiro livro. Mal tinha começado a ler e se ouvia sussurros vindo da biblioteca – "Aquela barba faz-me falta, mas não é para tanto... ou estou doida graças a ele? ", pensou. E assim, com os olhos de esmeralda colocou o ouvido próximo a estante, escutava cada vez mais os sons, não podia distinguir, mas sabia que seu nome estava sendo chamado. Retirou todos os livros com o maior dos ímpetos, um por um, e quando a estante jazia nua pôs a madeira abaixo e pode contemplar...

De início não via nada, senão escuro, e escutava uma canção triste:

Eu vi um homem azul, que cortava e degolava sem hesitar.

O homem azul bate as facas tortas,

O apetite de sangue sem nunca parar

Com os facões a tocar em frente...

Trazendo o inferno azul, recortando sua alma azulada que num jarro vai ficar.

Vai as mulheres azuis pendurar na parede, deixar um rastro azul de sangue.

Ainda assim, tateou os lados da parede com o coração a mil, logo o interruptor acendeu as lâmpadas. Tamanho foi o choque que caiu de bunda no chão, gritava e se desesperava com a visão de inúmeras mulheres penduradas em ganchos, espelhos de todos tipos refletiam e faziam da sala ainda mais assombrosa. Tamanha tortuosidade estava sua alma, tamanho o enjoo que se pôs a vomitar com o cheiro das várias mulheres mortas. Estavam todas degoladas, e o mesmo viria a acontecer, de tal forma que não conseguia conter o soluço.

Pensou que ia perder a alma de vista em meio a tanto pavor, e tentando recobrar a calma respirava – inspirar e expirar, dizia a si mesma. Era fácil colocar tudo no lugar e nada perceberia o marido, teria mesmo é que lidar com os nervos e as mãos que tremiam, em frangalhos nem percebeu que tinha alguns respingos de sangue pelo corpo. Mas, o sangue também insistia em não sair de sua mente e corpo, mesmo que esfregasse com toda força, até que a primeira mancha saiu junto com sua felicidade, para noutro momento outra mancha em outro lugar reaparecer. Às vezes podia escutar as almas arrastando as correntes e quebrando os vidros que virava alucinada achando que era o marido que havia chegado.

Barba Azul chegou no outro dia no cair do sol, e vinha numa felicidade tão grande que a abraçou tão forte que parecia que o mundo ia acabar. Isso permitiu que desse a ambos alguns momentos de folia, finais, pois, a febre de saudade não pode identificar logo de cara as pequenas sardas de sangue.

O jantar veio com aqueles cheiros retumbantes que nem o amor fresco, e as mãos ainda trêmulas serviam Barba Azul, que para seu azar pode perceber no justo e pode adivinhar facilmente que estava diante de uma bisbilhoteira.

"A base de um casamento não é a confiança? ", ele questionou.

"Não tenho a menor ideia do que você está falando", disse ela.

"Não tem a menor ideia, mas eu tenho! ", disse largando a comida de lado.

"E a base das suas riquezas centenas de mulheres degoladas? ", replicou a mulher ao primeiro questionamento.

"Muito bem então, você entrará naquela salinha, será a musa, a rainha das sem-cabeças e tomará seu posto de direito".

Ela se jogou nos pés do marido, chorando e pedindo perdão, era tamanho sua tristeza que podia comover montanhas. Mas, Barba Azul tinha um coração mais duro que rochedos e diamantes juntos. Era um verdadeiro arrependimento, que até citou as vozes e a canção sobre sua fama.

"Sua morte é hoje, senhora", disse firmemente, "e imediatamente".

"O amor que te dei foi vão? Jamais sentiu tal afeto e carinho de uma pessoa só, porque tal coisa" pensou em questioná-lo, mas achou mais sensato implorar, "dá me mais tempo, apenas orações inofensivas! ".

"Dou-lhe um quarto de hora", disse Barba Azul, "mas nem um segundo a mais".

Quando ficou sozinha no quarto da varanda, chamou suas irmãs e disse:

"Minha irmã Ana (pois era assim que ela se chamava), suba no alto da praça, e convoque todos, conte a história de Barba Azul, seus pecados e seus assassinatos! Eu rogo-lhe que venham hoje. Queimá-lo numa fogueira, porém devem se apressar".

A irmã que correu ali próximo da região, gritava e contava desesperadamente quem era Barba Azul. Incitava a inveja deles e suas iras, que não demorou muito que se achassem armados com facas, facões e piras de fogo.

A mulher que na varanda tremia, e esperava uma resposta da irmã pode ouvir o marido gritando a plenos pulmões:

"Desça já! Ou meu cutelo subirá aí".

"Um momento senhor, estou acabando, por favor", a esposa respondeu, e logo perguntou da irmã na janela:

"Cadê você Ana? ", indagou ela vendo apenas o sol coruscante e capim verdejante.

A irmã que vinha correndo euforicamente, tropeçando e arfando pesadamente acenava positivamente para irmã, e assim logo podia ver o fogo vindo na direção da casa.

"Trate de descer depressa", gritou novamente, "ou meu facão subirá aí".

"Já vou! ", respondeu a mulher, que já podia escutar o marido cantando a mesma canção de antes.

Barba Azul pôs se a gritar tão alto que toda a casa estremeceu. A pobre mulher desceu em assombro, tremendo em seus pés ela se debulhava em lágrimas com os cabelos desgrenhados.

"Não adianta mais, pode gritar! ", respondeu e agarrando-a pelos cabelos ergueu com uma das mãos e a outra com o cutelo pronto. Estava certo em cortar-lhe a cabeça quando ouviu a súplica segunda por mais um momento para se preparar para a morte.

"Recomende sua alma a Deus". E erguendo o braço...

Neste instante bateram à porta com tanta força que Barba Azul se vira acuado, e suspirando de medo cortou a cabeça e se pôs a subir as escadas. Estava elétrico em uma fúria, podia ver as luzes do fogo brilhando pelas janelas e vidros. Retirava os livros com violência, e tamanho era seu medo, que foi logo derrubando a estante. Não podia mais esconder os corpos, muito menos ocultar a presença da esposa degolada que pegando a pequenina chave brilhante abriu a caixa mágica. Queria salvar sua pele, mas sabia que era impossível àquela altura que fez um trato mágico. Seu coração ficaria preso naquela caixa até que uma pessoa de instinto animal pudesse soltá-lo. Sua alma ficaria confinada junto ao coração batendo, e assim, caiu ao chão morto. Não demorou e as pessoas encontraram, em gritos e espasmos, a mulher degolada e a sala da morte.

Aconteceu que Barba Azul não tinha herdeiros e o povo fez justiça queimando tudo, achavam que toda aquela riqueza e até a casa eram amaldiçoadas. E assim, o mundo esqueceu de Barba Azul. Até que um dia alguém encontre a chave.

 

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Barba Azul - O Canto da Morte (Recontado)Onde histórias criam vida. Descubra agora