Capítulo 70

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Minha amada filha;

    Já faz algum tempo desde que nos falamos pela última vez. Imagino que deva estar ainda mais linda e radiante que de costume.
   Sinto muito não ter escrito antes, isso não quer dizer que deixamos de te amar, estávamos apenas lhe dando um tempo para se acostumar a sua nova família.
    Infelizmente, esta não é apenas uma carta de mãe para filha. É muito mais que isso. É um apelo de uma mãe e esposa.
   A notícia não é nada boa, mas você terá que ser forte, como sempre foi. Terá que tomar uma decisão importante e sei quanto isso pode lhe afetar. Você é extremamente teimosa, mas sei que tem um bom coração e que talvez não agora, mas um dia possa nos perdoar.
  Como pôde perceber, estou relutante em lhe dizer o motivo de tantos rodeios, mas não vou me prolongar mais. Você já é uma mulher e sei que saberá agir como tal.
  Infelizmente seu pai está padecendo de uma enfermidade até então desconhecida. Faz meses que ele está assim. A noite ele chora, tem pesadelos terríveis e sofre uma dor inexplicável no peito. Ele fica dias trancado chorando no quarto, não quer comer, não quer ver os filhos e não consegue dormir. Mas existem dias que ele está bem, feliz, sorrindo e cantando. Ele brinca com as crianças e vai para a rua do comércio. É uma coisa confusa. O médico não sabe ao certo que tipo de doença é essa, mas ele afirma já ter visto casos semelhantes ao de seu pai. Ele disse também que não se trata apenas de uma enfermidade, mas uma doença da alma. E como tratar a alma? Não existem preparos, remédios ou unguentos para isso.
  Acontece que já faz algumas semanas que seu pobre pai está definhando. Ele não sai da cama, se recusa a comer e beber, está cada dia mais magro e infeliz. É como se ele tivesse morrendo de tristeza.
  Como eu já disse e você pôde perceber, as notícias não são boas. O médico desenganou seu pai. Ele vai morrer em breve.
  Essa carta é um apelo minha filha. Sei que ainda está magoada com o seu pai por tudo que ele fez, mas tenho certeza que o mal que o acomete se deve a culpa e a tristeza que ele sente por ter lhe feito sofrer.
  Sei que você realmente ficou magoada. Mas ele é seu pai. Ele te amou e te criou. Vocês precisam se acertar antes que seja tarde de mais.
  Pode parecer impossível, mas perdoar é o primeiro passo para a libertação.
  Seus irmãos estão sofrendo muito com sua ausência e agora com a iminente perda do pai. Sua presença se faz necessária. Sei que é pedir muito e que eu não tenho esse direito, mas você precisa vir se despedir dele. Vocês precisam de uma chance para o perdão.
  Não sei se eu deveria lhe dizer isso dessa forma, mas nos sonhos ele chama por você. Isso é um sinal. Não é?
  Sei que é uma pessoa sensata, carinhosa e tenho certeza que amadureceu. Não tenha medo de voltar a trás, o perdão é um dos mais lindos gestos do ser humano.
  E não se esqueça, o tempo é o seu único inimigo.

Carinhosamente mamãe!

  Era a décima vez que eu estava lendo aquela carta.
  Cada vez que eu a lia, eu a compreendia de uma maneira diferente. Mas em todas elas, uma coisa não mudava. Meu pai estava morrendo e isso era inevitável.
  Algumas lágrimas caíram no papel, borrando a tinta em locais onde as lágrimas da minha mãe não fez o trabalho.
  O que eu vou fazer?
  Eu já estava naquela sala há algum tempo. Não percebi que já era noite se não fosse pelo frio que invadia a casa pela janela que fora esquecida aberta.
  Caminhei a passos largos até a bandeja de prata ao lado do sofá e me servi de uma grande dose de uísque.
  Fiquei encarando intensamente o fogo que crepitava na lareira com o copo em uma mão e a carta na outra.
  Uma vontade incontrolável de jogar aquele pedaço de papel no fogo fez meu corpo tremer, mas me recusei a ceder aos meus instintos. Eu ainda irei ler mais dez vezes essa carta. Não só dez, mas quantas vezes for preciso para que eu finalmente aceite o que está escrito ali.
  Virei o copo de uísque em três goles rápidos. O líquido âmbar desceu queimando por minha garganta e deixando seu sabor forte e inconfundível em minha boca.
  Não satisfeita, tornei a encher o copo até a boca, onde um pouco do líquido se derramou no tapete da sala.
  Bebi aquele e mais três copos de uísque.
  Eu queria ficar bêbada. Queria que o álcool fizesse eu esquecer, que me tirasse do topor daquela notícia para eu não ter que lutar com aquela decisão que estava comprimido meu coração. Por que funciona com Dorian e comigo não?
  Algumas doses a mais depois, meus dentes estavam entorpecidos pelo excesso de álcool. Minhas pernas estavam bambas e eu estava enxergando tudo duplicado ou quadruplicado. Não sei.
  Sim, era esse efeito que eu queria. Mas não parecia me fazer não pensar nisso. Pelo contrário, eu conseguia pensar que meu pai estava morrendo e que eu sinto muita raiva dele.
  Cambaleando, encontrei meu quarto e caí de bruços na cama e escorreguei ate o chao onde permaneci imóvel até pegar no sono com a boca aberta e completamente vestida.
  Não demorou muito para que eu entrasse em um sono tão profundo, que se assemelhava a uma pequena demonstração de uma morte. Eu estava exausta e a bebida me fez dormir imediatamente, sem tempo para pensar ou sonhar.
  Em algum momento, braços fortes começaram a me sacudir com força me fazendo protestar.
- me deixa! -resmunguei.
  Alguém falou alguma coisa e eu tentei de verdade responder, mas soou algo parecido com cachorros dançarinos.
- HELENA! -alguém gritou comigo.
- hmm! - respondi.
  A pessoa me puxou até que eu estivesse sentada.
- abra os olhos!
  Abri os olhos a contragosto e a luz fez minha cabeça latejar. Tentei abrir os olhos novamente e vi Dorian sentado na minha frente segurando meus ombros. Atrás dele, Ian e Virgínia me encaravam preocupados enquanto Pietra me olhava com desprezo.
- Helena, o quanto você bebeu ontem? -perguntou Dorian meio preocupado e meio achando graça.
- só um copo de uísque! -falei colocando a mão na cabeça que doía muito.
  Dorian me ajudou a sentar na cama e se sentou ao meu lado. Eu estava dolorida por ter passado a noite no chão duro e frio.
- mentirosa! -disse ele rindo.
- não ri de mim! -briguei meio grogue.
- Helena, você bebeu uma garrafa de uísque. Acha pouco? Tem sorte por estar viva!-disse Dorian.
- que horas são? -perguntei olhando pela janela.
  A luz alaranjada parecia o nascer do sol. Por que me acordaram tão cedo?
- Helena, está anoitecendo! -informou Dorian.
  Não estava entendendo direito, acabou de anoitecer, eu só me deitei e...
- MEU DEUS!- exclamei.
- Você não apareceu o dia inteiteiro, a empregada não conseguiu te acordar e nos chamou. Achamos que você tivesse morrido. - disse Ian em uma espécie de irritação aliviada.
  A palavra morrido me fez lembrar de tudo que eu tinha feito força para esquecer, e logo as lágrimas deram lugar a confusão.
  Comecei a soluçar e chorar enquanto abraçava Dorian, molhando toda sua camisa.
  O abraço de Dorian era quente e forte. Seu cheiro era doce e extremamente convidativo, mas eu não estava confortável. Não era nesses braços que eu queria estar.
- MEU DEUS! -exclamou Dorian.
- Helena? -chamou Virgínia preocupada.
- Helena qual o problema? -perguntou Ian se aproximando da cama.
  Eu continuava chorando nos braços de Dorian. Ele fazia seu melhor pra me consolar, mas eu não conseguia me acalmar.
- ela só está fazendo drama!-disse Pietra.
  Ouvi os passos de Ian bem próximos de mim, senti seu braço a centímetros de meu corpo. Mas ele não me tocou.
  Ouvi o farfalhar de papel e soube que ele tinha encontrado a carta.
- Só vá embora Pietra! -pedi.
- não vou sair daqui!-disse ela irritada.
- é um problema de família. E você não é minha família! -falei irritada.
  Minha voz estava abafada, pois eu estava com o rosto comprimido contra o pescoço quente e macio de Dorian.
- Meu noivo está aqui. Eu fico!-disse ela.
- Pietra! - a voz de Ian soou como um aviso.
- eu já disse que não! -reclamou ela.
- deixa pra lá! -falei me afastando de Dorian e secando as lágrimas com as costas das mãos.
  Minha boca tinha um gosto amargo, estava seca e minha língua estava áspera. Parecia que eu tinha comido areia. Era uma sensação horrível.
- ela vai sair! - falou Dorian encarando ela intensamente.
  Pietra revirou os olhos e saiu batendo a porta com força.
- acho que descobri o problema! -disse Ian dobrando a carta com um suspiro.
- do que se trata? -perguntou Dorian preocupado.
  Virgínia tinha uma expressão preocupada, como se estivesse se sentido culpada por ter compartilhado seu segredo comigo e eu estivesse tendo uma reação retardada a nossa conversa.
- o meu pai... - sussurrei.
  Não consegui terminar e apenas assenti para que Ian pudesse terminar por mim.
- o pai dela está morrendo! -disse Ian.
  Dorian me abraçou apertado novamente e me deixou desconfortável.
  O silêncio foi ensurdecedor, mas Ian me surpreendeu com suas próximas palavras.
- Dorian?
- sim?
- será que eu poderia ter um particular com sua noiva? -perguntou Ian com todo o respeito do mundo.
  Olhei pra Ian confusa, depois para Dorian.
  Dorian encarou Ian por alguns segundos com a testa franzida e  depois de uma guerra interior cedeu.
- acho que tudo bem. Se ela quiser... - disse Dorian.
  Os olhos dele encontraram os meus em uma súplica silenciosa. Dorian queria que eu recusasse, mas eu precisava saber o que Ian tinha para me dizer.
  Assenti para Dorian que parecia bastante decepcionado com minha atitude.
- se precisar de mim, grita!-disse ele sabendo que eu não faria isso.
  Dorian e Virgínia se retiraram silenciosamente e fecharam a porta.
  Assim que meus olhos pousaram em Ian, eu não aguentei. Minhas lágrimas voltaram a rolar e eu corri para os seus braços.
  Os braços de Ian eram quentes e familiares, como voltar pra casa depois de dias perdida, confusa e assustada. Seu perfume familiar de vinho, seu calor, sua força... Era tudo que eu precisava nesse momento.
  Ian me segurou em seus braços sem dizer nada, e ficamos ali por alguns minutos ou horas. Não sei dizer. Só sei que eu consegui me acalmar depois de tudo.
  Antes de me afastar, Ian deu um beijo em minha testa e sussurou:
- Vai ficar tudo bem!
  Mesmo sabendo que nada ia ficar bem, eu acreditei nele.
- e então? Você vai? -perguntou ele cuidadosamente para não me fazer chorar mais.
- eu... Eu não sei! -falei confusa.
  Ele assentiu em silêncio.
- eu ainda estou muito magoada. Ele não podia ter feito aquilo! Não sem minha permissão! -argumentei.
- ele é seu pai! -disse Ian.
- eu sei... Mas... Não sei se posso perdoar!
- Helena, você não imagina o quanto invejo você! -disse Ian com um suspiro.
- como assim? -perguntei confusa.
- você está tendo a chance de ter uma última conversa com seu pai. Uma chance de perdoar ele. Eu não tive essa oportunidade! -disse Ian.
- mas não sei se consigo. Não sou tão nobre assim! -falei baixo.
- Helena, você já o perdoou. Só não quer admitir para si mesma porque é orgulhosa de mais pra isso! -disse Ian.
- não sou orgulhosa! -falei brava.
- não? -perguntou ele erguendo uma sobrancelha.
  Sorri sem achar graça.
- acho que você me conhece muito bem! -sussurrei.
- sim, eu conheço! -disse ele se aproximando.
  Seu corpo estava junto ao meu, tão perto mas tão longe...
- a única pessoa que te conhece melhor do que eu, é você mesma! -disse ele em meu ouvido.
- não está sendo justo! - falei me afastando.
- Helena, escute a voz da razão. Por favor, me escute pelo menos uma vez na vida! - implorou ele.
  Virei-me para poder olhar nos olhos dele. Havia mais do que sinceridade ali, havia culpa.
- não termine como eu. Se não for até lá ouvir o que seu pai tem a dizer, você vai se culpar para o resto da vida.
  Encarei ele por um instante.
- se não o perdoar, jamais irá perdoar a si mesma. Assim como eu jamais vou me perdoar por ter deixado meu pai partir sem poder dizer que o perdoava e que o amava.
- não sei...
- Helena, você sabe a resposta desde o momento em que resolveu encher a cara! -disse ele de mau humor.
  Encurtei a distância entre nós e coloquei as duas mãos espalmadas em seu peito, sentido seu coração acelerado.
- então, vem comigo? -pedi.
- o quê? -perguntou ele confuso.
- vem comigo Ian. Não vou conseguir passar por isso sozinha. Não posso suportar perder mais alguém. -falei séria.
- mas...
- a morte de Izabel, Wladimir e até seu pai... Não posso passar por isso sozinha!
- Dorian vai querer ir com você! -disse Ian um pouco atordoado com meu pedido.
- não, ele não entende... - falei.
- será impossível convencer ele e Pietra! -disse Ian cansado.
- tudo bem então! -falei decepcionada.
  Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
- Helena?
- quê?
- vou dar um jeito. Vou com você! -disse ele sorrindo.
- obrigada!
  Ele sorriu e saiu para chamar as outras pessoas.
  Quando todos estavam ali, menos Pietra, contei a eles minha decisão.
- vou ver meu pai!
- eu vou com você! -disse Dorian imediatamente.
  Olhei para Ian, achei que ele tivesse um plano, mas a voz de Virgínia me surpreendeu.
- não é uma boa ideia filho!
- por que não? Sou o noivo dela! -disse Dorian indignado.
- o pai de Helena está muito doente, não sabe dessa mudança de planos. Duvido que ele saiba que Ferdinando faleceu. Não podemos pressionar o homem, o coração dele pode não aguentar!-explicou Virgínia.
- mas ele não precisa me ver, eu fico longe! -disse Dorian.
- na verdade, ele também deseja ver Ian. - disse Virgínia.
  Dorian ficou furioso.
- como assim? -perguntou Ian.
- é melhor o Senhor Alberto pensar que você e Helena ainda estão juntos e que aprenderam a se amar. Só assim ele poderá se sentir menos culpado e descansar em paz! -disse Virgínia.
- desde quando pensa como o papai? -perguntou Dorian indignado.
- desde que fui casada com ele por trinta e dois anos! -disse Virgínia.
- o que você acha disso Helena? -perguntou Dorian preocupado.
- acho... acho que sua mãe tem razão. Não há motivos para preocupar mais meu pai!-falei baixo evitando olhar em seus olhos.
- tudo bem! -disse ele derrotado.
  Sem esperar por mais palavras, Dorian saiu a passos rápidos e batendo a porta com força.
- ótimo! Helena e Ian, arrumem suas coisas. Irão partir amanhã bem cedo!-disse Virgínia.
  Ian saiu do quarto imediatamente enquanto Virgínia me deu uma piscadela antes de se retirar.
  Ian foi muito esperto pedindo ajuda a Virgínia. Dorian jamais iria contrariar sua mãe. O difícil vai ser dobrar Pietra.
  Assim que esse pensamento surgiu em minha cabeça, ouvi os gritos de protestos dela do outro lado do corredor.
  A noite vai ser longa.

Casamento Arranjado [Completo]Opowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz