PARTE 1

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  "Não procure porquês na vida real. Muitas vezes as coisas acontecem sem que haja explicações... " 

Na descida para a garagem a luz do elevador oscilou. Três segundos depois um estrondo fez o prédio todo estremecer. Sabiam que não se tratava de uma chuva comum. Era uma tempestade anunciada. Marcelo até tentou adiar o exame naquele dia, mas foi voto vencido. A gravidez de Leila, com 41 semanas, inspirava cuidados especiais. Nessa fase o bebê pode entrar em sofrimento de uma hora para a outra. O monitoramento diário tem que ser mantido, alertara a médica horas antes por telefone. Marcaram para o último horário da clínica, como de costume.

O laudo do dia trazia boas notícias e ao mesmo tempo apreensão. Tudo certo com o primeiro filho do casal. Entretanto ele não demonstrava qualquer intenção de abandonar o útero da mãe. Leila não queria saber de cesárea e se mantinha focada no parto humanizado. Marcelo respirava fundo enquanto imaginava quantos exames mais ainda se sucederiam. Os pensamentos foram interrompidos a dois andares do fim da viagem. Um solavanco e a porta se abriu na sobreloja, para a lenta entrada de um casal de idosos. Empurrada em uma cadeira de rodas, a senhora sorriu e elogiou a enorme barriga de Leila. A porta se fechou e seguiram viagem.

Chegando ao subsolo, a luz voltou a oscilar, piscou uma, duas até que acabou de vez. Por pouco os quatro não ficaram presos no elevador. A lanterna do celular de Marcelo quebrou a escuridão, mas não lhes revelou de imediato a real situação. Ao firmar o pé para descer os dois degraus que separavam o hall do elevador do piso da garagem, Leila escorregou. A perna esquerda deslizou esticada para frente enquanto o corpo, com o sobrepeso da barriga, girou para o lado oposto e desabou sobre o joelho direito. Ouviu-se um estalo seguido de uma pancada seca e abafada. Preocupada em proteger a barriga, Leila bateu com a cabeça no chão e desmaiou.

Marcelo correu para socorrer a mulher e também escorregou. Só então percebeu que a garagem estava inundada. Já quase não se via o primeiro dos dois degraus que separavam o nível do elevador da área do estacionamento. Uma lâmina de água fria e escura cobria todo o piso. Apenas a metade superior das rodas dos automóveis estava à mostra. Com as pernas submersas até o meio das canelas, o marido olhou para a mulher inerte no chão e gelou ao perceber que a água continuava a subir. O pequeno platô onde Leila se encontrava caída não tardaria a ser engolido. Marcelo tentou usar o celular para pedir socorro, mas não havia sinal ou conexão disponível.

Para sair da garagem seria preciso subir com o carro uma rampa de acesso ao andar térreo. Havia ainda a opção de acessar as escadas, que ficavam do outro lado do estacionamento, próximo de onde Marcelo estacionara. Leila recobrara parcialmente a consciência, mas não conseguia mexer a perna. Chorava e gemia de dor. Na fala enrolada, o marido conseguiu identificar que ela começara a sentir fortes contrações. A barriga parecia bem mais rígida do que o normal. Marcelo avaliou que sua melhor opção era buscar o carro, trazê-lo até Leila para em seguida correr com mulher para o hospital. O casal de idosos se ofereceu para ficar com ela. Combinaram que sairiam dali todos juntos.

***

Deixar minha mulher com dois estranhos em uma situação tão extrema não me agradava. Mas não via outra opção. Mesmo no subsolo era possível ouvir a força com que a chuva caía lá fora. O desenho do estacionamento lembrava a forma de um "u". Estávamos na extremidade esquerda e o carro na outra ponta. Comecei a andar o mais rápido que pude, com os joelhos bem elevados para quebrar a resistência da água. Tirava um pé daquele lago negro e tornava a mergulhá-lo mais à frente. Quando avistei meu carro, a água já chegava em meus joelhos. Naquele momento entendi de onde vinha a correnteza que dificultava meus passos. A rampa que levava ao nível superior havia se transformado em um rio caudaloso. Não havia como subir por ali.

Senti meus batimentos acelerando quando cheguei no carro e notei que o nível da água já atingia quase o meio da porta. Não consegui evitar o desespero ao constatar que havia cometido um grave erro. As chaves! Porra! As chaves, seu idiota. As chaves ficaram na bolsa de Leila. A água continuava subindo. Não havia tempo para voltar. Àquela altura, sem poder ficar de pé, Leila e nosso filho certamente já tinham sido engolidos por aquela água fétida. Fechei os olhos e encostei a cabeça na lataria do carro por dois segundos. Só pensava em me punir. Por quê? Deus, por quê? Me preparava para quebrar a janela, quando uma mão pousou sobre meu ombro. Era um senhor. O mesmo do elevador. Em um misto de susto e reflexo bati com violência em seu braço e por pouco não o agredi com um soco.

– Caralho! Quer me matar do coração, merda?! Você deixou minha mulher sozinha? – gritei descontrolado.

– Calma, meu jovem. Ela está bem. Eu vim, trazer as suas chaves. – disse em um tom sereno e apaziguador.

Ao ver o senhor me estendendo a mão com o meu chaveiro tive uma explosão de choro. Abracei aquele estranho, como quem se agarra a um sopro de esperança. Foi como se ele me devolvesse uma lucidez que eu já não acreditava ser capaz de recuperar. Quando enfiei a chave na porta ele segurou minha mão e evitou que eu cometesse outro grave erro.

– Não abra porta. Você precisa entrar pela janela.

Acionei o controle remoto da chave para baixar os vidros. Projetei cabeça e tronco pela janela do motorista e fui me esgueirando até alcançar o banco do carona. Quando levantei a cabeça, já dentro do carro, não encontrei mais o senhor. Olhei em volta do carro e ele não estava lá. Chamei por ele. Gritei mais alto do que o barulho da chuva e da enxurrada que corria pela rampa. Nada. Não houve resposta. Fechei as janelas, e com as mãos trêmulas enfiei a chave na ignição. Pedi a Deus que o carro ligasse, mesmo com o escapamento submerso. Liga, liga, vai... Liga, porra... Ligou! Soltei um grito e só então percebi que chorava novamente. 

Mantive a primeira marcha em alta aceleração e consegui contornar o estacionamento até encostar rente ao hall do elevador.

[CONTINUA...]





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