PRÓLOGO. A LENDA VIVE

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Talon

"O que foi Talon? Porque está tão desanimado?" Papa perguntou, sua voz tão firme e ao mesmo tempo tão suave me enchia com a certeza de que eu sempre estaria seguro.

"Eu não posso alcançá-lo, não consigo bater nele! Por que é tão difícil? Por que ele tem que ser mais forte que eu?" Os fios negros de meu cabelo caiam sobre meus olhos, eles ainda eram curtos, não havia uma regra que me obrigasse a ter fios longos, mas papa usava o cabelo assim.

Tudo o que eu mais queria era ser como ele.

Zorik Davul não era meu pai. Não de sangue, porém era meu pai com seu espírito e coração, foi o homem que não me deixou morrer congelado à beira de um rio no auge inverno. Foi o homem que me alimentou, cuidou de mim enquanto estive doente e ficou ao meu lado mesmo quando os hormônios da adolescência me transformaram num delinquente rebelde.

Ele teve todos os motivos para desistir, mas não me deixou, e eu seria eternamente grato por ele nunca ter desistido. Ele era tudo o que eu respirava, era o sol do meu mundo, tudo o que eu queria ser, o único que eu gostaria de orgulhar. Até que ele foi tirado de mim.

"É claro que consegue!" Eu podia ver seu sorriso tão brilhante, seus olhos tão confiantes enquanto sua mão apertava meu ombro magro num conforto que eu me negava a querer. "O problema é que você ainda é muito pequeno garoto. Sabe Talon, você é mais forte do que pode imaginar, quando o vi pela primeira vez, você era tão pequeno e estava com tanto medo..." ele hesitou por alguns segundos. Eu via os movimentos de sua garganta como se ele tivesse engolido com dificuldade algo muito ruim.

"Eu não sinto medo." Protestei. Ele sorriu de novo, seus olhos já não estavam mais distantes.

"É claro que não, mas de qualquer modo, foi isso o que pensei. Não a única coisa que pensei na verdade, você era só um bebê grande, e estava muito machucado além de está jogado à beira do rio com aquela correnteza congelante passando por você. E eu pensei: - Ele não durará muito tempo."

"Achou isso mesmo?" Perguntei um pouco desapontado. A verdade sobre meu passado era algo que eu não gostaria de compartilhar com ninguém, não me importava ao de chamado de órfão e outros nomes igualmente ruins. A verdade é que eu estava muito melhor com a vida que levava agora.

"Sim, durante as primeiras três noites, você quase morreu de verdade. Estava com tanta febre, e mesmo que colocássemos você em uma bacia com gelo a temperatura não baixava. Em alguns momentos você se contorcia e gritava como se estivesse sentindo uma dor inumana nos ossos, foi tão doloroso vê-lo sofrendo tanto." Zorik sorriu tristemente. "E quando toda a aldeia se preparou para a notícia de que o menino do rio congelado estava morto. Você nos surpreendeu. Ficando forte mais uma vez, tendo a vida sugada para dentro de você novamente."

"Porque está me contando isso?"

"Para que você nunca duvide de si mesmo. Você pode conseguir coisas incríveis Talon. Você pode mudar a verdade absoluta de uma aldeia inteira com uma simples demonstração da sua determinação. Você só tem que acreditar em si mesmo, pode fazer isso?"

Balancei a cabeça, não tinha certeza de que conseguiria falar sem que minha voz tremesse.

"Ótimo. Porque eu acredito em você. Acredito que sabe a hora de lutar com unhas e dentes, mas também sabe quando desistir de uma luta perdida." Ele apontou para Mike e sua turma de valentões. "E essa é uma luta que não vale à pena. Não por você não ser capaz de ganhar, mas porque eles não são capazes de mudar."

E foi ouvir aquelas palavras estruturou toda a minha perspectiva de vida.

Os pensamentos invadiam o silêncio absoluto presente em minha cabeça, um atrás do outro, momentos bons, felizes com Zorik que só faziam com que eu ficasse mais confuso, e furioso. Encarei os olhos fixos à minha frente. O homem parecia quase perplexo, não viam nada como aquilo em muitos anos. Eu não podia ver a cor de seus olhos, mas conseguia sentir seu cheiro e ver seu cheiro como uma nuvem de fumaça que se movia ao seu redor desprendendo-se de seu corpo criando um fio de cor cinza por onde ele havia passado, ele fedia, seu fedor imortal enchia minhas narinas me fazendo bufar irritado.

Não sabia o que havia acontecido comigo, mas a profunda dor e fúria ao ver Zorik despedaçado me impulsionou àquilo, e então eu era pelo e grunhidos e garras mortais.

Apesar de não identificar todas as cores com clareza, eu conseguia ver as linhas vermelhas que desciam suavemente por seu queixo, tão suavemente como se zombasse de mim, como se zombasse da minha incapacidade de proteger.

Porquê demorou tanto? Eu poderia tê-lo salvado.

Zorik deveria estar vivo. Mas não foi isso o que aconteceu, foi preciso que o que eu mais amava no mundo me fosse retirado para que o ódio me fizesse mudar.

Logo diante de mim a criatura se movia, seus movimentos eram suaves e graciosos, quase meigos, eu poderia admirar a leveza deles se não soubesse o quê ele era. Com um giro que mais parecia um ensaio de dança o homem virou-se para correr, meu instinto predatório me dominou, e eu saltei sem mesmo registrar meus movimentos.

Eu senti seu fedor por meses rondando a aldeia e não dei importância nenhuma. Ninguém deu. Mas então o vi se aproximar de Zorik e o atacar com movimentos tão rápidos e precisos que eram impossíveis de serem visto por olhos humanos.

Eu não era apenas humano. Agora eu sabia, havia um motivo para que eu tenha sobrevivido ao rio congelado, esse motivo. Minhas presas se fecharam com firmeza no pescoço do homem que caiu graças ao impacto das minhas poderosas patas. O gosto amargo junto ao som dos ossos sendo partidos não trouxe a sensação e paz que eu esperava.

Não fez com que eu me sentisse vingado. Mas me ensinou uma dolorosa lição que jamais seria esquecida. E naquele momento, jurei jamais ser pego desprevenido de novo.

Essa era uma luta que valia à pena.

Essa era uma luta que valia à pena

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