3- Sobre nós

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Eu deveria estar dormindo, já são 2h da madrugada e o dia será cheio, mas depois de muito relutar, fui ao quarto do casal.

Sento na cama, ainda no escuro e observo o quarto. Aqui a decoração era bizarra, minha irmã com certeza tinha uns gostos engraçados. A cama parecia uma salada de fruta por causa das estampas multicoloridas do coberto e fronhas, as paredes estavam recheadas de quadros de paisagens aleatórias que não se conectavam e artesanatos locais. Tem um tapete com estampa de zebra no meio do quarto...

- E eu sempre fui considerada a esquisita da família... Enfim, gosto não se discute, né? E eu vim discutir coisas mais relevantes. Isso é meio ridículo e absolutamente inútil, mas eu preciso ter uma uma conversa franca contigo. A gente vem se falando desde a morte de nosso pai, mas foi sempre dentro de limites, nunca passavam de futilidades.

Acho cômico como até ontem, eu acreditava que tínhamos motivos verdadeiros, que era perfeitamente justificável, que permanecer nesse esquema subentendido de silêncio parcial era o melhor a se fazer. Hoje eu me acho tão tola, eu prometi a mim mesma que não deixaria o peso da nossa família me esmagar, mas mesmos depois deles partirem eu permaneci soterrada.

Sei que isso vai ser mais um desabafo, mas são coisas que eu preciso te dizer...

Eu sinto muito por ter rompido contigo, isso sempre me entristeceu. Você era a minha sombra, minha escudeira. A gente passou por uma infância desesperadora e ter você sempre foi meu chão. Quando eu fui crescendo e me dando conta do que estava acontecendo eu me revoltei, mas você ainda não conseguia entender. Você é dois anos mais nova que eu, talvez precisasse de mais tempo pra perceber que nossa família não era normal, mas na época eu me senti abandonada. Nós eramos parceiras, devíamos lutar juntas, mas não foi isso que aconteceu, eu não consegui aceitar, estava magoada e ferida. Você também tinha muitas magoas e feridas, mas preferiu ficar do lado deles, então eu me distanciei.

Eu estava dando tantos problemas, que a mamãe adorou quando eu sugeri o internato, eu fugi e fazia questão de não voltar mesmo nos intervalos longo, toda vez que eu voltava era uma confusão. No meu último ano, você me pediu pra voltar nas férias do meio de ano, você sempre foi meu grande amor, então eu fui te ver. Se as visitas anteriores foram trágicas, essa foi apocalíptica rsrs

Você me contou que estava se relacionando com o Rodolfo e que era sério. Eu surtei, toda loucura que tinha em mim foi gasta naquele dia. Te acusei de ser doida, de ter sofrido lavagem cerebral, disse que você se vendeu só pra ser aceita pela família, que você era conivente com tudo que acontecia na nossa casa e de ser insana o suficiente pra querer se enfiando numa furada igual...

Eu falei muito mais que isso, mas estava movida a ódio, então não registrei tudo.

Eu odiava os Martins, pra começo de história, eram do circulo de amizades do papai e ao meu ver eram tão sujos e desagradáveis quanto o próprio. Rodolfo Jr. era 2 anos mas velho que eu, um serzinho metido e agressivo que gostava de intimidar os mais novos e por alguma razão que me continua desconhecida, papai queria que se casasse comigo.

Você deve se lembrar, foi a última vez que eu fui passar o final de semana em casa. Nosso pai tinha arrumado um jantar entre as famílias e eu resolvi que seria o momento propício para esclarecer a questão, uma vez que o ódio que eu emanava parecia ser sútil de mais, eu disse em alto e bom tom "Eu subo o Monte Everest e me atiro de lá, antes de subir num altar com você. E se for pra me submeter a esse tipo de experiência desagradável eu não volto mais pra casa"

Eu lembro de ter me achado um máximo pela gracinha, mas aquele pequeno discurso saiu bem caro, a noite foi um total pesadelo. Lembro que depois de tudo você veio falar comigo, achei que estaria do meu lado, mesmo que fosse só ali, dentro do nosso antigo quarto, mas você veio me convencer a parar de contrariar o papai...

Eu simplesmente levantei e pulei a janela, estava dolorida de mais pra correr, mas fui andando, realmente queria andar até o Everest e me jogar de lá, mas me contentei em chegar até a minha escola, eram mais de 6km e eu estava com sono.

Eu não via uma razão sequer pra esse relacionamento existir se não o capricho do nosso pai, queria dar um jeito de ti tirar dessa, mas você disse que não precisava de resgate, que gostava dele e construiria sua família, que tudo ficaria bem.

Você disse que estava grávida.

Eu não acreditava que você tivesse discernimento da situação, pra mim você era minha irmãzinha e meu maior medo sempre foi você se corromper com todo caos que era nossa vida.

- Perdão. Eu sempre te vi como uma vitima, incapaz de se defender. Você sempre foi forte e ciente de suas ações, mesmo que fossem completamente opostas as minhas, você tinha controle de sua vida. Você construiu sua família, e para minha alegria, viveu bem diferente dos nosso pais.

- Acho que agora é a hora de me desculpar com você Rodolfo...

Depois de ouvir a notícia da gravides eu perdi o último pingo de sanidade em mim e fui atrás de você. Te chamei de pedófilo pra baixo. Te agredi verbal e fisicamente em praça pública, disse que tinha sido estupro.

Você foi um adolescente estúpido, se eu não fosse uma Chaves, você nunca passaria disso pra mim, mas essa não era a circunstância. Meu pai gostava de você, então eu te odiava, pra mim você era um monstro em potencial. Me desculpe por ter ido tão baixo nas acusações e pelo tom incivilizado que adotei... mas vamos combinar que vocês podiam ter esperado um pouquinho, ela tinha 16 e nem terminou a escola!!! De qualquer modo, me perdoe.

Você passou por uma humilhação pública, mas meu mundo estava desabando e eu tomei a maior coça da minha existência por causa disso.

Segundo meu pai eu "joguei o bom nome da família na lama", acho que por isso ele não segurou a mão, já iam falar da gente mesmo, minha cara roxa ia ser só mais um parágrafo.

Naquele dia eu acordei no seu colo Amélia. Você fazia carinho em meus cabelos como na infância, mas em vez do belo sorriso, tinha o rosto coberto de lágrimas.

Você lembra o que me disse Amélia? Você beijou minha testa e disse: Tão tempestuosa

De fato eu era. Você sempre foi a calmaria e eu fazia de tudo para que permanecesse assim, inclusive tempestades. Não sei se você reparou, mas hoje eu sou uma pessoa muito calma, sou até muito elogiada por ser tão centrada. Você consegue imaginar?

Eu errei muito contigo Mel, eu não tive paciência, eu me afastei e depois que não sabia mais quem você era eu te abandonei. Eu tive tanto medo que você sofresse, de tiver no lugar da mamãe, que eu preferir não te ver. Eu sei que você precisou de mim, você estava decidida, mas só tinha 16 anos e estava grávida, me perdoe por não estar presente.

Olho pra cadeira em frente da penteadeira, tem uma pilha de casacos no encosto, me aproximo e vou tirando um a um.

- Aposto que você estava escolhendo um casaco pra levar, mamãe também fazia assim rsrs

Olho pro espelho, tem duas fotos presas, uma de Lucas bebê e outra nossa, acho que com 5 e 7 anos. A gente era muito parecidas quando pequenas, passávamos por gêmeas.

Agora estamos muito diferentes, parei de alizar o cabelo no ensino médio, meus cachos chegam quase a cintura, seu cabelo liso nunca passou do ombro. Minha pele negra tem muitas pintas e algumas manchas (lembrança de uma adolescência recheada de espinhas e mãos nervosas), sua pele sempre foi limpinha, como de bebê. Da ultima vez que ti vi, seu rosto estava mais cheio, você tinha covinhas lindas. Nossos olhos ainda são parecidos, eu acho, só com uma tonalidade diferente...

Olhando para o espelho tentando achar seu olhar no meu, percebo minhas lágrimas, percebo que o tempo realmente passou e eu desperdicei cada segundo.

- Eu não consigo te ver nesse reflexo, eu não te ouço respondendo ao meu falatório... você não está aqui.

Estava ao meu alcance, mas a última vez que te vi pessoalmente foi no enterro da mamãe. Todas minhas últimas lembranças suas estão banhadas em suas lágrimas!!!

Eu amava tanto o seu sorriso, mas perdi a habilidade de provoca-lo.

Eu fui feliz longe daqui. Espero que você também tenha rido muito todos esses anos, espero que tenha sido muito amada, que tenha alcançado todos os seus planos.

- Espero que me perdoe por não ter dito isso antes.

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