o grito

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Ah, a dor. Mal sei se provém de meus pulsos apertados e inchados ou se da cascata que cai no vão de meu coração aguado, quase se afogando. Sinto os batimentos a vácuo por conta de tanta água impura e desprezível circundando.

A luz não chega até mim, pois a percepção da esperança se esvaiu há muito tempo. Pra mim, o feixe de luz e poeira que vejo pelo buraco da porta não passa de um lustre artificial preso ao teto. Nada muito inspirador para um cara que já desfrutou de todo o luxo; um luxo que jamais mereceu.

Ainda há vestígios assim que puxo as engrenagens em uma força eletromagnética, mental e dramática: vestígios de um eu supostamente feliz, confiante e apaixonado; um alguém que ainda procura saber que parte se encontrou no corpo de outro alguém.

Hyunjin.

Hwang Hyunjin.

Era uma casa habitável para mim, porque jamais ninguém morou em seu coração oco. Fácil de simpatizar. Os jovens são seduzidos pelo novo, porque é como se descobrissem algo somente deles. Consequentemente, egoístas.

Sou brutalmente egoísta.

A brutalidade é tão perversa que sorri em sua direção quando se entregou à lástima de meus atos: um homem capaz de qualquer coisa pelo melhor, alguém costurado desde o início em linhas e agulhas de luxúria, materialismo, sarcasmo, egoísmo. Hyunjin aceitou minhas costuras e, logo, deixei que arrancasse meus pontos com dentes e tudo. Há marca por toda parte até hoje.

Hwang não era exatamente tão perverso quanto eu, mas tinha suas particularidades tão instigantes quanto. Lembro-me de seu sorriso caçador e matador, ㅡ não é exatamente intimidador quando sabe que vai acabar reciprocando mais cedo ou mais tarde ㅡ do corpo escultural em cada traço e curva, aquele corpo por onde minhas mãos passearam e tiveram a chance de ler as palavras escondidas, ㅡ teu corpo era um belo enigma, uma pena não desvendá-lo até o fim ㅡ os lábios saltados, dotados de um conhecimento fascinante, ㅡ era um prazer ouvi-lo falar durante horas e horas na varanda da minha casa rústica enquanto tomávamos chá e a melodia proveniente da vitrola domava nossos desejos perversos logo em seguida, como duas cobras fracas e sonhadoras ㅡ e, por fim, os olhos ㅡ ah, seu par de pérolas negras cintilantes e sem vergonhas, que atraíram com força minha curiosidade de vontade do novo.

Se eu soubesse...

Ah, se soubesse que Hwang era tão podre quanto eu.

Dizem que, em um mundo desabando, não basta ter cuidado onde pisa, porque até as aparências enganam uma lar, segurança, conforto. E Hyunjin fora como a casa rústica que jamais teria, fora os lustres pendurados, os talheres de prata e os camafeus talhados do século XVIII.

E é tudo uma mentira.

Porque é só a bosta de um imóvel que, caso deixe um mísero fósforo cair no chão, queima e despedaça em partes que um estúpido coração não pode acompanhar.

Casa é família, não rusticidade.

Casa é coração, mas não daqueles talhados em madeira de Pau Brasil.

Casa é amor, não luxúria.

Casa é amor, não espelho. Não eu. Não Hyunjin.

Não demorou para que as pilhas de dinheiro onde nadava se transformasse em redemoinho de dor e enganação. Doeu saber que a corrente marítima era aquele que jurou me amar incondicionalmente. As mãos não se entrelaçaram para a graça da salvação ou dupla miséria e queda. Mas tudo bem. Eu sabia. Eu simplesmente sabia que o egoísmo em teu coração seria o protagonista; sabia que era seu santuário.

A tristeza nunca é demais para compreender a miséria daqueles que tem um coração lotado de compaixão; a raiva nunca é demais para aqueles que entendem passividade como sinônimo de folga, superficial controle; falta de reciprocidade nunca é demais para aqueles que se olham no espelho e têm a coragem de amar o próprio coração, enferrujado e incompreensível. Nada é demais, nada é de menos.

Eu sou uma balança descontrolada.

Hyunjin pesa em meu reflexo, vejo tamanha falta de profundidade. Tão raso quanto o prato que usava para jantar, os talheres perfeitamente alinhados. Uma organização tão superficial, esboçando falsidade sem que precisasse vomitar meus olhos e coração para fora. Como fui tolo de não notar? Quando me tornara tão.....eu mesmo?

Dinheiro nunca é demais para aqueles que deixam circular sangue desaguado em cascatas de cegueira, poder e insanidade.

Não era demais para Hyunjin.

Depois de comprarmos juntos o novo imóvel rústico, repleto de quartos secretos e obras de arte, não pensou duas vezes antes de atirar os restos de meus cacos na masmorra mais imunda e angustiante. Agora, sangrando na ponta dos próprios pés, gorfando vidro de palavras afiadas, rodeada de materialismo, chorando poeira vitral capturada nos olhos do único que pensei amar, risco as paredes com um pedaço de carvão, contando o final dos tempos ㅡ as correntes nos pulsos doem, a luz nunca atravessa meu peito e o prato de comida nunca se parece com os que eu costumava a comer e ainda me espanto de dar atenção a coisas que, na realidade, não merecem nem um pingo do meu sangue imundo.

Não há grito que rompa a ruína interior; não há lamento eletromagnético que traga de volta o polo que uma vez fora meu total oposto, minha salvação ㅡ Hwang já não é exatamente o que posso chamar de Norte do meu Sul. Porque sua polaridade não aponta canto lamentável senão igual ao meu.

A casa é de sua posse e fui dado como desaparecido há dois anos.

Estou aqui, quietinho, desfrutando de minha ruína...e mais alguns caquinhos.

Aguardo até que a luz do lustre se apague. Porque só assim consigo dormir No escuro feito de mim.

No lugar onde mereço estar por ter acreditado que obras primas eram assim: concretas e realistas.

[🕯]

ㅡ ruína. stray kids | hyunminWhere stories live. Discover now