Combina com você

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Cada vez mais, meu mundo saía de controle. Àquela altura, para ser completamente franca, qualquer semblante de controle era provavelmente só algum tipo de alucinação minha. Não bastasse ter que fugir daquela Serpente de novo, ainda acordei sendo estrangulada por uma cobra, sendo salva por Marcos só para ouvir que aqueles monstros estavam vindo de dentro de mim.

Depois do… depois daquilo Marcos desceu comigo para cozinha. Sentei à mesa, só pensando na possibilidade daquilo…

Não diga isso, por favor.

Daquilo talvez…

Droga!

Daquilo talvez ser verdade. Não sabia se deveria rir, chorar, gritar, me calar.

Como alguém deve reagir numa hora dessas, Emile?

Eu não sei, Emile.

Minhas mãos ainda estavam tremendo. Eu sentia o que restava do meu mundo escapar por elas, grão após grão, revelando abaixo uma superfície que eu nunca tinha visto e não sabia nem mesmo dizer como era.

Talvez se só por um momento eu…

Fechei os olhos.

Quem sabe…

Abri os olhos. Eu não estava em casa. Eu não estava nas minhas roupas. Minhas mãos ainda estavam tremendo.

Marcos colocou uma xícara na minha frente e despejou chá nela. Ele então se sentou e colocou a chaleira entre eu e ele, a fumaça escapando para cima, espiralando, enevoando o rosto dele. Fiquei encarando Marcos, depois a chaleira e então a xícara.

— Beba – ele disse. – Você precisa.

— Se eu beber, eu acordo? – eu falei.

— Você não está dormindo.

No chá, estava o rosto de uma garota que não sabia de nada. Bebi um pouco. Era amargo. Terrivelmente amargo. Queria cuspir aquele chá fora ou jogar açúcar nele. Mas algo me dizia que não adiantaria de nada. Só disfarçaria o gosto. Olhei para Marcos. Ele bebia o chá com tanta naturalidade, com tanto costume.

— Ei – eu falei. – Como… como aconteceu? Como você virou um mago? Por que aquela mulher te conhecia? Por que ela tinha medo de você?

Marcos colocou a xícara de lado e se inclinou para frente, apoiando os cotovelos na mesa.

— É uma história complicada – ele disse. – Não é algo com que você deva se preocupar agora.

— Eu quero saber – eu disse. – Mesmo que eu não entenda nada, eu quero saber.

Marcos acedeu de leve. Seus olhos correram para o vapor que fugia da chaleira. A fumaça se expandiu para os lados, se tornou numa cortina que encobria todo o rosto dele, enquanto as luzes se apagavam uma após a outra, até todo o foco estar apenas no centro do palco.

— Meu pai era um mago – ele disse. – E o meu avô provavelmente também era. Eu descobri isso quando tinha sete anos. Meu pai me disse que eu tinha mais talento do que qualquer outro em nossa família jamais tivera e que, por isso, ele iria me ensinar a praticar magia. Para uma criança, isso sempre soa como algo incrível. Pensar que você é especial, que tem talentos incríveis e que irá viver aventuras e coisas assim. Eu fiquei feliz de ouvir aquilo. Mas a felicidade não durou muito. A cada dia, eu aprendia um pouco mais sobre a natureza do jianghu… do submundo. Eu esperava elfos, fadas, mas descobri que eles mal existem mais. Não era uma conclusão difícil de alcançar. Ninguém nunca via um elfo aparecer na televisão ou ouvia histórias de negócios entre os anões das montanhas e os mineradores. Essas são coisas que pertencem a um outro tempo, a um outro mundo. Como na Irlanda os Fomorianos foram expulsos pelos Filhos de Danu e como os Filhos de Danu foram expulsos pelos Homens, eu aprendi que a magia estava desaparecendo desse mundo. Ela ainda existe, mas escondida nos cada vez mais raros recantos escondidos da iluminação. Monstros são perigosos demais, afinal, e magia imprevisível demais para um mundo de máquinas e ciência. Logo eu comecei a querer me afastar, mas meu pai nunca me deu essa escolha e eu não era forte o suficiente para tentar desafiá-lo. Eventualmente, me mudei para a Irlanda para continuar estudando. Conheci pessoas lá, bons amigos. Inimigos também. Dentre eles, a Fragarach. Embora, no começo, eu não possa dizer que era realmente inimigo deles. Até hoje, eu não tenho certeza se discordo dos objetivos deles e compreendo os métodos que eles usam. Não me entenda errado, eu nunca me aliaria à Fragarach e não acho que ela possa mesmo trazer de volta essa tal Era das Lendas. Mas isso não é importante. O fato é que eu e meus amigos acabamos entrando em conflito com a Fragarach e, mesmo que tenha tido um preço duro, nós vencemos. Acredito que essa é parte da razão pela qual Aalto reagiu como reagiu. Embora eu tenha certo renome no jianghu.

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