DISCUSSÃO CURIOSA

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Escutei, outro dia, uma discussão curiosa. Dois grupos que poderíamos sumariamente chamar de "conservadores", a um, e de "radicais", a outro, batiam-se com a maior argúcia por uma noção de beleza, a da beleza feminina. A coisa nascera de uma asserção preliminar lançada por uma "radical", de que o corpo de Greta Garbo era lindo. Uma "conservadora" se levantou horrorizada, dizendo que não podia haver nada mais feio: "É uma mulher ossuda", afirmava, "com ombros de cabide, braços de chipanzé e costas de baú. Como é possível achar bonito 'aquilo'?".
Uma aliada juntou-se às invectivas. Estabeleceu-se o maior charivari durante uns dez minutos do do qual brotou o seguinte dilema: ou Greta Garbo ou Paulette Goddard, cada uma representando no caso uma noção de beleza, a própria beleza, creio mesmo que toda uma estética.
Greta Garbo representava a beleza para a minha "radical". Dizendo ela, a meu ver com bastante razão, que a beleza não pode ser uma noção, não pode ser mesmo uma forma, mas que isso é uma sensação a se desprender do que muitas vezes não é puro rigor estético. Afirmava o corpo de Vênus como a beleza, assim como os corpos de Greta Garbo ou Katharine Hepburn. O corpo de Paulette Goddard era o rigor estético, mas não era a beleza. Faltava-lhe inteligência na imobilidade ou gênio no movimento. Podia ser cientificamente perfeito, com todos os seus índices anatômicos exatos, seu grau de adiposidade medicamente em condições. Agora, Greta Garbo com suas saboneteiras claviculares, suas rótulas massudas e seus pés avantajados, era muito mais a beleza, porque tudo nela servia para harmonizar uma qualidade misteriosa do seu ser íntimo que a tornava inatacável. Paulette Goddard fora a beleza uma vez, nas mãos criadoras de Chaplin. Greta Garbo era sempre bela, acima de todos os diretores ruins que já a dirigiram. Com esse argumento fortíssimo a minha "radical" encerrou a discussão.
Quantos de nós, entre Greta Garbo e Paulette Goddard, ficariam com a primeira? Greta Garbo é uma mulher-sumidouro, sem a menor dúvida, uma mulher orquídea, de condição fatal, e por isso mesmo que não é "uma beleza", mas a própria beleza, essa harmonia de valores físicos imantados espiritualmente num ser; um pé grande, valendo no caso mais que trinta perfeitíssimo girls de concurso; um movimento de cabeça destruindo o vampirismo capilar de todas as Ann Sheridan do mundo.
Como em toda a troca de argumentos, neste, cada um ficou com, no final das contas, convencido da própria verdade. E como sempre acontece havia um "eclético" no meio. Esse ponderou, passada refrega, que o papel era ficar com Greta Garbo, não deixando por isso de dar umas escapulidas para levar Paulette Goddard ao cinema, a ver A dama das camélias...

1941

O melhor de Vinicius de MoraesWhere stories live. Discover now