O movimento é impossível. Foi o que Zenão de Eleia disse. E, apesar de eu ter discordado da ideia durante todos os dias desta semana na aula de Filosofia, às vezes penso que sei o que ele queria dizer. É quarta-feira, dia da revista literária. Justin e Kristina estão dez minutos atrasados. Eles sempre estão dez minutos atrasados. Isso não me incomoda. Já aprendi a esperar por este tipo de coisa. E se não me enviarem textos, sempre posso trabalhar no layout ou nos anúncios, ou apenas me sentar e ler um livro. Justin e Kristina têm várias coisas para fazer depois da aula, mas eu só tenho a revista literária. Quando os dois finalmente chegam, passam pela porta de mãos dadas e rindo. Justin está com sua câmera digital no pescoço como sempre, e Kristina está usando uma calça de yoga e um moletom da Universidade de Yale grande demais para ela. Seu cabelo está amarrado para trás em um rabo de cavalo. Desculpe, estamos atrasados, ela diz. Justin se desculpa também. Tive que tirar algumas fotos espontâneas dos alvos costumeiros: treino de futebol, líderes de torcida, time de hóquei fazendo suas corridas... Para a porcaria do anuário. Fui com ele para ajudar, Kristina diz. A Aimee Hall poderia ser mais óbvia? Justin ri. Na verdade, ela posou para mim abraçando a raquete de tênis. Foi tosco, Kristina diz, ajustando seu rabo de cavalo enquanto agarrava os cabelos dos dois lados e puxava-os para centralizá-los perfeitamente em sua cabeça. Quando o pessoal da cidade fala sobre ela, dizem: Sabe que é a cor natural dela? Dizem: Aposto que ela e aquele Justin Lampley vão ter uns filhos bonitos pra caramba. Dizem: Não entendo por que ela anda com aquela esquisitona da vizinhança. Aquela esquisitona sou eu...
Vamos para o Sparky s antes que eles fechem para a temporada? Topa? Kristina sabe a resposta, mas pergunta mesmo assim. E ela também sabe que eu mataria por um milk shake do Sparky s.
Não posso. Noite de escola. Você sabe como são as regras de cidade do interior da família Jones: nada de sair em dias de semana, a não ser para clubes, esportes ou outras atividades relacionadas à escola. Quem sabe na sexta, então? É a última noite deles. Vai estar lotado, mas vale a pena, ela diz. Hum, Kris, temos um encontro duplo na noite de sexta, Justin fala. Ai, merda! Foi mal. Não posso sexta. Encontro duplo. É tão fofo, não é? Tão anos 1950. Quando eu os escuto falando assim, fecho meus olhos e visualizo Kristina em um vestido azul de chiffon, que termina em um godê bem abaixo dos joelhos, com pérolas e sapatos de salto alto de cetim. Visualizo Justin em uma calça de pregas de alfaiataria. Eles são uma brasa, mora, sacudindo o esqueleto. As pessoas dizem: Você sabe que aqueles dois saem em encontros de dois casais toda noite de sexta? Não é assim que deve ser? Justin olha para seu relógio. Já deu seu horário? Eu mostro a caixa vazia de textos enviados, e ele tira o telefone e começa a caminhar em direção à porta. Precisa de carona pra casa?, pergunto à Kristina. Ela olha para Justin, que já está mandando uma mensagem para Chad. Sabemos que é para Chad porque Justin fica com uma expressão diferente quando manda mensagens para ele. Claro, ela diz. Justin está rindo de alguma mensagem de texto que acabou de receber e nem nos escuta. No momento em que apago as luzes da sala da senhora Steck , conseguimos empurrá-lo para o corredor e trancar a porta. Quando nos despedimos, ele grunhe, digitando furiosamente no tecladinho do iPhone. Kristina diz que precisa pegar alguma coisa no armário dela antes de irmos e que vai nos encontrar na entrada da frente. Então, paro no banheiro e no meu armário. Na hora em que chego lá fora, vejo Justin e Kristina ao lado do carro dele no estacionamento, conversando com um grupo de seus amigos atletas e populares. Todo mundo é legal com o Justin porque, se ele for com a sua cara, haverá mais chances de você entrar no anuário. E se ele não gostar? Vamos dizer que Justin pode fazer você ficar muito bem ou muito mal em uma foto. Justin e Kristina têm essa coisa de namoro desde o meio do segundo ano, então isso de as pessoas serem superlegais com o Justin se estende a ela. Às vezes, até se estende a mim, se eu apareço nessas horas, quando eles estão reunidos no estacionamento, mas hoje não estou com vontade. Eles provavelmente estão dizendo: Espero que vocês ganhem como rei e rainha do baile! Têm meu voto! e coisas assim. Eu decido entrar no carro e esperar os ônibus partirem. Procuro no porta-luvas uma embalagem de antiácidos e tiro três para mastigar. Dizemos adeus para Justin quando os ônibus se vão, e dirigimos pela rua principal da cidade histórica de Kristina. Não chamo de minha cidade porque não penso nela assim. Eu ainda me lembro de Nova York . Adoro o cheiro do vapor suado vindo dos subterrâneos pelos bueiros e dos carrinhos de rua cheios de cachorros-quentes fervendo. Essa é minha cidade, e não Unity Valley.
Unity Valley é a cidade da Kristina. E agora é a cidade da minha irmã Ellis, mesmo que ela já tivesse 9 anos quando nos mudamos e se lembrasse muito bem da vida em Nova York . Minha mãe diz: Vocês duas têm uma chance de pertencer realmente a este lugar . Seu pai e eu vamos sempre ficar de fora, porque – bem, vocês sabem – por causa da nossa educação e do nosso modo de pensar . Mas vocês duas podem realmente ser meninas de uma cidade pequena. Ellis comprou essa ideia. Está vivendo assim. Até onde posso ver, está funcionando para ela. Mamãe diz: Temos muito mais espaço aqui! O supermercado é tão grande! As ruas são seguras! O ar é limpo! As escolas são melhores! Sem crimes! E as pessoas aqui param e dizem olá! Claro, mãe. Elas param e dizem olá e, quando você passa, elas falam pelas suas costas, como se você fosse um nada. Elas avaliam sua roupa, seu cabelo, e deturpam o que você diz para que fique feio. Se não as escuto falando, escuto outras pessoas. Sobre os moleques negros: Ouvi que aquele menino dos Kyle arrumou uma bolsa de estudos. Tem de ser negro para conseguir . Não vejo porque isso é justo. Jimmy Kyle conseguiu uma bolsa na Villanova porque só tira nota A e quer estudar Direito. Sobre as duas calouras latinas: Os pais nem falam inglês. Aqui é a América, não é? Franny Lopez é americana de terceira geração, e seus pais nem falam espanhol. A mãe de Michelle Marquez já tem problemas suficientes sem ter de aprender uma segunda língua. Cuide da sua vida. Sobre minha família: Viu que eles têm casas de passarinhos no quintal? Não sei quanto a vocês, mas isso é um convite para encher a rua de titica de pássaro. E quem quer titica de pássaro? Eles dizem: Não é natural que ele faça sua filha usar um martelo. Talvez esse tipo de coisa aconteça na sua cidade também.
Queria que você pudesse vir com a gente ao Sparky s esta noite, Kristina
diz.
Consigo viver sem milk shake até o próximo verão, eu digo. Estamos a um quarteirão das nossas casas, na parte mais bonita da cidade. Eu pensava que os prédios de tijolinhos vermelhos de duzentos anos eram muito bonitinhos, sabe? Pensava que o centro da cidade, com seus paralelepípedos, era pitoresco. Era diferente e novo. Aquilo foi meio forçado para mim no começo, mas acabou ficando tranquilo, depois de eu passar pelo choque inicial. Posso mesmo trazer pra você um milk shake, sabe? Não sei por que isso só está me ocorrendo agora, ela diz. O que é melhor que o Sparky s além do serviço de entrega do Sparky s?
Isso seria muito foda! Eu ia ficar te devendo muito. Talvez até uma orelha ou um dedo do pé, ou sei lá..., eu digo. Ela ri. Não precisa me dar um dedo do pé, cara. Ai, que bom!, eu digo, fingindo estar aliviada. Eu planejava usar o meu para outras coisas depois, tipo andar e ficar em pé. Kristina ri novamente e até faz um barulho engraçado. Mas então vai ficando com uma expressão preocupada no rosto conforme nos aproximamos de sua casa. Acha que as pessoas sabem?, ela pergunta. Ela é tão casual. Não. Tem certeza? Tenho certeza. Eu queria ter certeza assim. Não se preocupe, ninguém sabe. Não está falando da boca pra fora?, ela pergunta. Nada da boca pra fora. Prometo. Sou os ouvidos desta cidade. Ninguém sabe.
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Os dois mundos de astrid jones
HumorQuestione tudo. Eurípides A única sabedoria verdadeira é saber que nada se sabe. Sócrates Conheça-te a ti mesmo. Antigo aforismo grego