O CADÁVER

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      Em um lençol de folhas secas, iluminado por um feixe de luz amarela havia um cadáver. Este cadáver – pálido como um cadáver costuma ser – estava solitário, por entre as árvores, em uma floresta no outono. Digo, não estava tão solitário porque eu estava a poucos passos dele, olhando-o com curiosidade e espanto. Afinal, não é todo dia que se vê um cadáver pessoalmente, não é mesmo?

      Eu digo para vocês que é incomparável a sensação de ver um corpo sem vida tão de perto. As poses nada cinematográficas e a estética sem vida podem lhe causar calafrios. As reflexões filosóficas que nos provocam. Não há nada igual, em minha opinião. Ver a morte tão de perto e, ao mesmo tempo, ver um nada, vazio, em processo de putrefação chega a ser confuso. É fascinante!

      "Não deve haver uma casa por perto" pensei, afinal, não havia nem sequer uma estrada!

       "Como haveria aquele cadáver chegado ali" você se pergunta? Também foi o que eu me perguntei a seguir. Afinal, ao se deparar com curiosa cena, não é isso que qualquer um se perguntaria?

        Eu havia ouvido histórias sobre mafiosos que se livravam dos corpos de seus inimigos de maneiras semelhantes. Estava eu me deparando com tal cena? Por um momento me excitei pensando que sim, mas então tomei essa hipótese como ridícula e a esqueci, tomando como mero fruto da minha imaginação fértil.

       É estranho que – talvez para sessar o caos de meus pensamentos – em minha cabeça tenha começado a tocar o primeiro movimento da Sonata ao Luar, de Beethoven? Na verdade, eu até comecei a murmurar a canção enquanto encarava aquilo, na medonha paisagem amarelada.

    Confesso que estava um pouco assustado demais para me aproximar até aquele momento. Até ali, parecia até que minhas pernas não queriam se mexer.

      Dei o primeiro passo e, depois de alguns segundos, o segundo e o terceiro, subindo o sútil morro, no qual o cadáver se encontrava.

      Era como se fosse um palco, com holofotes apontados para o artista. O cadáver usava um colete elegante que me era familiar, pois era popular entre os alunos do Câmpus. O corpo estava caído, com o rosto virado para baixo e com o braço direito sobre ele, de modo que era impossível identificar quem era o infeliz morto.

      Não saia da minha cabeça que aquilo antes foi alguém, com um passado e planos para o futuro. Mas agora era um nada. Não mais do que uma carcaça de animal morto.

      Outra coisa me veio à cabeça. Eu havia lido, há muito tempo atrás, em minha pequena folga da universidade – se é que procrastinar pode ser chamado de folga –, sobre seitas secretas. Se alguém traísse a confiança dessas seitas, sumiria e ninguém saberia o que foi feito do pobre coitado. Isso explicaria a cena perfeitamente... Mas era uma hipótese ainda mais ridícula do que a anterior.

      Eu cutuquei a lateral da barriga inchada do cadáver... Foi interessante. Ele estava frio. Era estranho! Reparei que seu cabelo também me era familiar e isso, por algum motivo, foi assustador.

      Meu coração gelou e eu cambaleei para trás e acabei caindo, rolando morro a baixo. Seria possível? Será que o cadáver era alguém que eu conhecia? Será que eu havia sido posto ali como peça de uma brincadeira diabólica?

      Nesse momento uma vontade súbita de sair dali me tomou a alma. Saí correndo na direção oposta, sentindo minha respiração ficar rapidamente ofegante, mas, tamanho era o incômodo, que não parei, apesar disso.

      Desviei de arbustos e de galhos e pisei sobre pedras com musgo e, em uma dessas, escorreguei e cai de cara no chão e por um segundo fiquei ali, tentando assimilar tudo que estava acontecendo.

      Quando olhei para frente, o que vi trouxe de volta a sensação que estava começando a ficar comum, que era o gelar de todo o corpo.

         Era o corpo novamente, parado sobre o mesmo palco.

     Eu me tomei por sentimentos adversos. Uma sensação negra, triste e corrosiva me afogou em pavor. Ao mesmo tempo em que eu queria, por uma curiosidade maligna, descobrir a face daquele morto, eu estava com medo do que pudesse descobrir ao desvendar sua face.

     Levei alguns minutos para me recuperar do choque e levantar novamente. Fitei o cadáver enquanto o fazia. Ele, imóvel, zombava de minha pessoa, rindo de minha queda e do fato de estar repleto de folhas emaranhadas em meu cabelo e em minhas roupas. Era uma piada para ele!

      Distrai-me por um segundo, me perguntando se meus colegas na universidade estavam sentindo minha falta. Eu andava ausente nos últimos dias e, tal era nossa amizade, que estava estranhando não sentirem minha falta mesmo depois de tantos dias. A última vez que nos vimos foi quando saímos para caçar.

      Andei sobre as folhas secas e novamente estava próximo do cadáver. Respirei fundo, para tomar coragem de olhar seu rosto. Aproximei meu braço de sua cabeça, mas tive ânsia de vomito e me virei para o outro lado, forçando o gosto ruim para de volta do meu estomago.

      Eu tinha que tomar coragem e tirar este sentimento de dentro de mim. Novamente fiz todo o processo de aproximação, tentando ser rápido para não dar tempo de ser tomado pelo medo, mas novamente parei a polegadas de distância do corpo. Eu engoli o medo a seco, mas quem me dera não o ter feito. O que eu vi fez-me gritar enlouquecidamente e vacilar para trás, caindo novamente.

      Era meu rosto! Era eu o cadáver!

      Agora eu era apenas um fantasma, sem estar no céu ou na terra!

FIM

O CADÁVERWhere stories live. Discover now