As marcas do passado

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-Foi no meu primeiro ano aqui... - Jane começa a falar após organizar seus pensamentos por um tempo - Eu estava perdida. Não sabia para onde ia, o que eu deveria fazer, na verdade não sabia nem quem eu era. Tudo o que sabia era o meu nome e mesmo assim só porque a Lua me contou. A primeira lembrança que tenho, é da escuridão. Lembro da sensação de estar flutuando, lembro do medo que senti por não conseguir entender o que estava acontecendo comigo. Mas então eu vi a lua, ela brilhava tanto que parecia espantar toda a escuridão... e aí eu não tive mais medo. Eu estava dentro de um lago com a superfície congelada e sentia como se fosse puxada para fora, sabia que era ela me puxando. Quando saí, finalmente pude respirar e eu ouvi ela falando comigo, disse que meu nome era Jane Frost. Eu queria saber onde eu estava, o porquê de eu estar ali porém ela não falou mais nada. Então comecei a olhar em volta, estava vendo tudo pela primeira vez e... fiquei encantada. Era tudo tão bonito! A lua, as árvores, o gelo, até que eu acabei pisando em alguma coisa. A princípio era só um pedaço de madeira, um cajado, mas quando encostei nele outra vez, onde toquei ficou esbranquiçado como se estivesse congelado e quando o peguei, ele soltou uma luz azul, quase como um raio, fazendo um desenho no gelo e toda vez que eu encostava ele em algum lugar, congelava. Quando me dei conta que isso era porque eu tinha poderes, o peguei e quis testar tudo, quis saber quais eram os meus limites, até que eu consegui voar. Eu me lembro de me sentir feliz... - Jane dá um sorriso com a memória mas logo ele se desfaz, deixando apenas um rosto triste - ...só que não durou muito. Eu comecei a voar e parei em um vilarejo, estava de noite e frio, então não tinham muitas pessoas do lado de fora mas fui para lá assim mesmo querendo perguntar para quem eu encontrasse onde é que eu estava. Aí eu vi uma garotinha. Ela estava sentada em uma pedra, perto de algumas árvores no limite do vilarejo, estava tampando o rosto com as mãos e parecia estar tremendo mas quando cheguei mais perto percebi que na verdade ela estava era soluçando de tanto chorar. Me abaixei na frente dela e perguntei o que havia acontecido para... sei lá... tentar ajudar ela, só que ela não me ouviu. Invés disso, ela se endireitou, se levantou e passou direto por mim. Ela literalmente me atravessou como se eu fosse névoa, como se eu não estivesse ali. Tentei falar com outras pessoas que encontrei e aconteceu o mesmo, todas me atravessaram. Eu não entendia o que estava acontecendo, perguntei para a lua várias vezes mas ela nunca respondeu. Então passei a voar para todos os cantos procurando alguém que pudesse me explicar ou ao menos me ver, mas todos me atravessavam. Eu não estava ali para elas, eu não existia, eu era invisível... ainda sou - Jane suspira profundamente, com o olhar triste e fica alguns segundos perdida nesses pensamentos. Sei exatamente o que ela está sentindo, também senti essa tristeza durante todos aqueles anos e embora agora eu não a sinta mais, saber que ela ainda passa por isso me faz sentir muito mal por ela. Logo, Jane pigarreia e volta a sua linha de raciocínio - Bom, depois disso, eu não parei para contar exatamente mas acho que um ano depois, eu estava voando enquanto nevava e eu percebi que era eu quem estava fazendo nevar. Até que de repente ouvi um barulho bem alto a minha frente e um monte de renas saiu de um círculo brilhoso que abriu no céu. Elas quase me atropelaram mas por pouco desviaram e um trenó que elas puxavam ficou bem do meu lado, nele tinha um homem enorme de barba branca. Eu achei que fosse acontecer o mesmo de sempre e ele não fosse me ver mas ele me viu, ficou me encarando intensamente surpreso e até confuso. Só que quando eu fui falar alguma coisa ele bateu as rédeas e saiu dali tão rápido quanto apareceu. Eu iria deixar para lá mas em todo aquele tempo ele foi a primeira pessoa que pareceu notar minha existência então... eu o segui, sem ele saber. E após muito tempo voando, em um lugar totalmente isolado, avistei uma construção em uma montanha que se estendia para as outras ao seu redor e o trenó voou para lá. Eu fiquei por cima, queria entrar mas fiquei com medo, logo avistei uma janela redonda e bem grande no telhado do prédio mais alto, fiquei ali olhando lá para dentro. Não demorou muito o homem barbudo que eu tinha visto apareceu e mais outras três... bom... não eram exatamente pessoas, enfim, vieram atrás dele. Eles pareciam estar discutindo alguma coisa, não conseguia ouvir o que era já que eu estava longe mas logo a luz da lua apareceu bem pela janela de onde eu estava olhando e entrou no salão como se fosse um farol. Os quatro lá em baixo olharam para cima e me viram, depois de alguns segundos, quando a luz foi embora, um deles veio até mim, era uma fada, ela me pegou pelo braço, me arrastou lá para baixo e me jogou no chão. Os quatro ficaram em volta de mim, me olhando e acho que pensando no que fazer comigo. Eu não sabia se eles eram bons ou maus mas por serem os únicos que me viram, perguntei o que estava acontecendo, pedi alguma informação do por que ninguém me via, perguntei se eles sabiam de alguma coisa... eu implorei por ajuda e eles não me responderam nada. Invés disso, começaram a gritar comigo, dizendo: "Vai embora!", "Você não tinha que estar aqui!", "Você foi um erro!", "Não devia nem existir!", "Você tinha que desaparecer!". E em meio a tanta gritaria, um deles fez um buraco abrir bem embaixo de mim que me sugou e me levou para um lugar aleatório. Algumas horas depois, o Homem da Lua voltou a falar comigo, disse quem eles eram, O Papai Noel, a Fada do Dente, o Coelho da Páscoa e o Sandman, disse que eles eram guardiões mas não disse mais nada. Eu perguntei porque me trataram daquele jeito, perguntei se o que eles disseram era verdade, se eu era um erro mas ele se calou novamente, só que de vez. Depois disso, sempre que por um acaso encontrava com os guardiões por aí, me olhavam com desprezo ou viravam a cara e rapidamente iam embora, como se eu fosse a coisa mais repulsiva que eles já tivessem visto - a voz dela começa a ficar embargada, o que faz com que sua tristeza seja passada e eu consigo sentí-la - Ninguém no mundo inteiro me via ou ouvia, os únicos que viam me desprezam e o outro me ignorava completamente. Eu não queria viver assim... fora que por não terem me dito o contrário, comecei a achar que eu era um erro, que realmente não devia estar ali, que eu deveria mesmo... sumir. Então, um dia, eu fiz uma estaca de gelo e a afundei no meu coração - sinto um enorme peso em meu peito ao ouvir isso, quer dizer, ela tentou se matar mesmo? - Eu fiquei aliviada, porque achei que tudo estaria acabado. Fiquei esperando tudo acabar... mas nunca aconteceu. Horas depois de muita dor, resolvi tirar a estaca de mim achando que aí sim iria funcionar só que aconteceu o contrário, eu me regenerei. Eu tentei outras vezes, de outras formas, mais dolorosa, mais rápida, indolor, mais demorada... não adiantava, fiz coisas que não tinha como um ser humano sobreviver, fazia em intervalos grandes de tempo achando que no ano seguinte iria dar certo mas no fim eu sempre continuava viva. Depois de tantas tentativas falhas acabei por desistir, constatando ser imortal e confirmei isso com o passar das décadas já que eu não envelhecia. Então, já que eu não tinha como fugir, nem outro lugar para ir, nem ninguém para conversar... fui obrigada a passar o resto da minha vida imortal... na solidão.

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