Capítulo 2

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Ana havia criado coragem para confrontar Richard, levantado da mesa e ignorado a possibilidade de pedir sobremesa extra. Mas, quando Lola simplesmente os arrastou para uma conversa sobre verduras e frutas que parecia nunca querer acabar, a garota repensou o plano. Era claro que a tia fizera de propósito, conhecendo o temperamento da sobrinha.

Não podia chegar de repente e perguntar a uma pessoa o que estava fazendo ali e por quê. Mesmo que ele tivesse chegado de repente e mexido com toda a sanidade que estava tentando se convencer que tinha.

A garota hesitou diante do carro preto e brilhante que os esperava na rua. Sorrindo para as duas, Richard abriu a porta para que se acomodassem no banco de trás, onde - para desespero mais que surpresa de Ana - havia um pequeno bar com bebidas e uma minúscula televisão. Apenas quando a tia lhe deu um empurrão nas costelas, ela se obrigou a entrar, se encostando contra o canto oposto o máximo que pôde.

Um milhão de perguntas se enroscavam em sua mente, lhe dando uma fraca dor de cabeça. Ana observou Lola, que parecia tensa mesmo com aquele sorriso de gloss no rosto jovem, ajeitando os cabelos platinados em uma pequena trança.

Por quê. Por que, raios, estavam no carro de um homem claramente mais rico do que elas poderiam sonhar em ser, com um clima esquisito que não dava para disfarçar e um presente... Céus, uma jóia!

Como que em resposta, o pulso pálido da jovem latejou em contato com a prata em forma de estrela, e ela abriu o fecho com um clique que esperava ser abafado pela conversa dos dois adultos. Então, jogou a pulseira no fundo da mochila, enfiando as mãos nos bolsos do moletom. Aquilo lhe transmitia uma sensação estranha, que a assustava. Ela sabia o motivo.

Conforme eles atravessavam as ruas movimentadas da cidade, Ana deitou a cabeça contra o vidro. E, como se por um passe de mágica, adormeceu.

☀️

Ela estava com calor. Muito calor. O sol escaldante do meio-dia fazia sua pele coçar e os olhos se fecharem em aversão à luz. Ainda assim, Ana caminhava pela grama alta e dourada, em direção ao castelo, em direção a ele. Aquele imã que parecia preso em seu peito aquecia e a puxava, cada vez mais, enquanto aquela voz antiga sussurrava em seu ouvido.

Ele virá. Ele virá até você.

A garota sorriu, sem saber exatamente o motivo, e continuou caminhando, acelerando, correndo até o rapaz, seus olhos tão iguais aos dela, os cabelos oscilando atrás de si como ondas de chocolate arrastadas pelo vento. Ela sussurrou um nome. Um nome há muito esquecido. Família.

Em resposta, o trinado de uma ave preencheu o campo isolado, cada vez mais perto, quando ele respondeu, chamando por uma moça. Uma moça nascida e carregada pela escuridão. O grito soou e ricocheteou por seus ossos, por seu sangue, por sua alma, e ela continuava correndo, a jóia prateada tilintando em seu pulso como uma canção. Não, um aviso.

Ana não se importou de ouvir quando se impulsionou para frente. O castelo. Estava tão perto... Mas tudo que sentiu foi um impacto quando caiu de joelhos no gramado que arranhou sua pele até sangrar. Não; Não um gramado. Terra. Seca, um círculo perfeito, maior que seu corpo caído. A garota se apoiou nos cotovelos para se levantar, percebendo as pequenas marcas ali, feitas com cuidado e precisão.

Quatro estrelas, alinhadas como pontos cardeais. E no centro...

A jóia no pulso pareceu pulsar, e ela encarou, encontrando novamente aquele presente belo e estranho que ela já vira mais de uma vez. Um ano atrás, em seu aniversário; outra vez, naquele mesmo ano, no solstício de inverno; dois dias atrás, quando acordara atrasada para o trabalho e Lola estivera na beira de sua cama, a expressão vazia.

Ana estremeceu. Não era real. Não podia ser. Aquele sonho - aquele que a assombrava por tanto tempo - era fruto de sua mente fértil e nada mais. Apenas o vício por histórias épicas surtindo efeito.

Uma força invisível pareceu prendê-la no chão, os olhos fixos na estrela do norte brilhante, quando alguém a chamou. Então Ana Foster sentiu como se estivesse caindo, para o subsolo e a escuridão além.

☀️

- Ana? Ana!

Ela abriu os olhos, se sentando ereta com o susto. Olhos azuis e preocupados a encaravam, uma ruga aparecendo entre as sobrancelhas sobre eles. Lola tocou sua testa, então seu pescoço, estalando a língua.

- Febre. - constatou, erguendo as sobrancelhas de modo inquisidor. - Eu deveria imaginar. Vamos, chegamos em casa.

Ana simplesmente se arrastou para fora do carro, saltando para a calçada molhada e errando a mira: os All Star vermelhos acertaram em cheio uma poça com água suja e afundaram ali. A garota jogou a cabeça para trás, em uma prece silenciosa, e fez o máximo para conter um grunhido exasperado. Ela predendera usar os tênis no dia seguinte; agora nunca iriam secar a tempo.

O trio atravessou o pequeno jardim gramado da casa, um sobrado com dois quartos diminutos, cozinha americana e uma sala aconchegante e cheia de janelas com cortinas verde-água. Uma escada em forma de S levava ao andar de cima, vasos de flores artificiais adornando os patamares.

A menina atravessou a sala e jogou os tênis encharcados na minúscula lavanderia, correndo em seguida para as escadas, em direção a seu quarto. O Santuário de Ana, como costumava chamar, não era grande coisa; uma janela com cortinas azul cobalto na parede dos fundos, uma pequena cama cheia de almofadas de um lado e uma estante improvisada do outro, feita com algumas caixas de madeira, cola quente e luzes de Natal. E, entre tudo isso, livros e mais livros empilhados, um marcador de página saltando para fora de cada um e inúmeras pequenas telas pintadas. Para ela, aquele móvel era seu bem mais precioso. Todas as telas minúsculas penduradas retratavam temas parecidos: sereias, castelos e montanhas que pareciam estar vivos e olhando para ela. Tinha certo fascínio por miudezas.

Mas todas pareciam se curvar para a maior de todas, presa na parede oposta, logo acima de sua cama: atrás de uma colina coberta de neve, um universo inteiro se estendia até as bordas da tela, se mesclando com cascatas e figuras mitológicas sobrepostas em cada extremo da pintura, parecendo estar sendo arrastadas para longe do centro.

Ana não se dera o trabalho de comprar uma moldura para a arte. Era como se seus traços conversassem entre si, representando mais que uma galáxia, mais que tinta no tecido, mas uma infinidade de idéias e emoções que não faziam muito sentido. Depois de muito tempo pensando e devorando pipocas, decidira que um mundo inteiro não podia ser contido em uma moldura. Era maluquice, mas os artistas nem sempre são muito normais.

E foi nisso que pensou, quando entrou no recinto, os pés descalços se arrastando no chão frio. Era não era louca. Não podia ser. Nem com todo o café que tinha ingerido nos últimos dias ela poderia alucinar daquela forma. Mas sua cabeça estava cheia de perguntas, cheia de curiosidade e ansiedade. Mal tinha feito algo de verdade naquele dia, mas sua mente estava pesada, suas idéias embaralhadas. Ela se sentia tão cansada...

Tudo bem.

Amanhã se preocuparia com isso. Amanhã iria arrumar uma desculpa para a falta no trabalho. Amanhã responderia as mensagens no celular. Amanhã...

Ana sentiu os ombros relaxarem, como se uma nuvem de exaustão a cobrisse. A visão ficou turva, como se estivesse por trás de uma cortina. Mas ela não queria dormir, não agora, não com tantos planos...

Ana acariciou a barriga cheia de bolo com satisfação antes de cair num sono repentino e denso.

☀️

Aurora | Adhara: Deraia - Livro IOnde as histórias ganham vida. Descobre agora