9 a 12 de janeiro

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Rio de Janeiro, Terça-feira, 9 de janeiro de 1996

Talvez eu esteja louca. Provavelmente estou mesmo, perdi completamente a cabeça, mas dane-se. Nunca faço algo impulsivo, tenho pavor de impulsos, e acho que isso deve contar a meu favor. Mas, só por via das dúvidas, comprei este caderno no aeroporto para poder reler depois e julgar. E, aliás, ainda não fiz nada. Estou sentadinha em uma cadeira bege, quietinha, e há sempre tempo para voltar atrás. Tudo o que eu fiz até agora foi dar dois telefonemas, um ruim e outro bom.

O telefonema ruim foi para Jean-Claude, meu marido. Ele estava saindo para levar o Victor para jantar, ficou agradavelmente surpreso por eu estar ligando duas vezes no mesmo dia, e então o tempo fechou. É tudo insegurança e paranoia dele, é claro, e quem melhor que eu para entender insegurança e paranoia? Ainda assim, desliguei o telefone muito menos empolgada e mais culpada.

Então liguei para a minha amiga Jackie, que ficou animadíssima ao saber do meu surto. Segundo ela, que sempre me lembra o Mestre Yoda de Guerra nas Estrelas, eu finalmente parei de fugir e estou indo de encontro ao meu destino. Ah, que coisa, só quero visitar o lugar de onde, segundo a Renata, eu nunca deveria ter saído. Só quero ver se é lá que eu me sinto em casa. Eu prometi pra terapeuta de York que voltaria um dia, não prometi? E que melhor momento do que agora? Estou de licença, e minha estadia no Brasil só estava me deprimindo. Disse isso a Jackie, contei sobre tudo que havia passado pela minha cabeça na banheira do hotel em Ipanema, e ela concluiu: "Então. Você finalmente está pronta, e já não era sem tempo".

Não sei. Não sei se estou mesmo pronta, se estou atrasada, ou se estou tentando arrumar razões para trazer alguma emoção à minha vida. Bom, qualquer que seja o motivo, está tudo bem, eu estou bem há tempo demais, estou casada há tempo demais, não tem o menor perigo. E, por mal das dores, tem o Victor também, que é só uma criança que não sabe de todo o drama que antecedeu o seu nascimento. É ele que me mantém com os pés no chão, e impulso algum vai mudar isso. Não é? É.

Londres, Quarta-feira, 10 de janeiro de 1996

2 horas da tarde.

Calculei mal o tempo de chegada. Estou no meio da rua, um frio do cão, e não tem ninguém em casa, claro, é o meio da tarde de um dia de semana e todo mundo normal está trabalhando. Não que eu tenha tentado planejar ou calcular coisa alguma, se tivesse feito isso, provavelmente nem estaria aqui. Pelo menos tenho tempo para pensar, e escrever, enquanto os meus dedos não ficam duros e caem de frio. Então vamos lá. Vamos aos fatos:

1) Cheguei às 11 da manhã e o Heathrow está com a decoração um tantinho diferente, embora ainda caótico. Vi um fantasma da Renata me esperando, vi o fantasma da Kate a abraçando. Tá, foi horrível e maravilhoso ao mesmo tempo, deu aquela nostalgia dolorosa, e acho que, se isso não foi me sentir voltando pra casa, então não pertenço a lugar nenhum do mundo.

2) Peguei o metrô com as minhas duas malas, o que foi um trabalho hercúleo, e ainda bem que ninguém olha pra cara dos outros porque, logo que ouvi o primeiro "Mind the gap", comecei a chorar.

Discretamente, claro, eu sou uma dama, mas solucei toda vez que ouvi outro "mind the gap", o que significa que solucei o tempo inteiro.

3) Arrastei as malas pelas escadas da estação, ninguém me ajudou, e eu adoro essa má-educação londrina. Senti a primeira lufada do ar de Londres, do cheiro de Londres. Como vivi tanto tempo sem sentir isso? Depois vim puxando as malas pela rua, completamente em estado de graça. Eu tinha esquecido do quanto essa cidade é absolutamente LINDA! Cheguei em frente ao prédio da Renata e comecei a chorar de novo. Que bom que está frio, o que diminui os riscos de desidratação.

Diários de Malu - 1996 [AMOSTRA]Where stories live. Discover now