18 de janeiro a 2 de fevereiro

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Quinta-feira, 18 de janeiro de 1996

O problema dessa ideia toda é que escrevi furiosamente durante cinco dias, e agora o caderno fica me encarando, fechado e vazio. Quando estava indo para Londres tudo era muito novo e emocionante, mas agora eu vou contar o quê? Que fiz carne assada para o jantar?

Na verdade, quem cozinhou foi o Jean-Claude, porque eu fui à reunião dos Narcóticos Anônimos. É a quarta reunião do NA que eu fui essa semana (isso mesmo, fui todos os dias). Não ando em nenhuma fissura horrorosa, Deus sabe que já as tive em número suficiente para reconhecê-las antes que a primeira gota de suor frio me brote na testa, mas acho que quero me lembrar o porquê de ter-me auto exilado. Tem sido bem difícil, porque amo a Jackie de paixão, mas ela é uma amiga contra sete e uma vida inteira que deixei para trás.

Voltei para o conservatório na segunda-feira me sentindo renascida, um ser fabuloso, viajado, internacional e amigo de celebridades, mas depois fui ao NA, e quando cheguei Jean-Claude estava ajudando Victor com o dever de casa, e o meu prato estava pronto na cozinha, e vi que continua tudo a mesma coisa. Jean-Claude anda teimando em não comentar a minha parada em Londres, o que, vá lá, é compreensível quando se pensa no fracasso completo do Plano. Mas, por outro lado, Jean-Claude desconhece o Plano e o fracasso, e tudo o que eu fiz foi pelo bem dele e da nossa família. Não foi? Foi. Victor, vítima inocente dos acontecimentos, está vestindo há quatro dias a camiseta que o Mick autografou para ele. O Mick é o seu ídolo atual.

Bom, mas eu teria me acostumado muito bem à rotina se a vaca da Natalie não tivesse telefonado na segunda-feira mesmo. Gosto de enfatizar que não fui eu que comecei a chamá-la de vaca, mas não conseguia dizer que ela era minha enteada e quem veio com o apelido foi Renata, o qual eu relutei em usar até descobrir que ela é uma vaca de verdade. Bom, Natalie ligou, eu atendi, e será que ela me deu os pêsames pela morte da minha mãe? Será que ela perguntou como eu estava? Será que ela puxou algum assunto bobo que ambas teríamos pressa em terminar? Não, senhoras e senhores. Ela simplesmente ordenou que eu chamasse o pai dela.

Seis anos atrás, eu entendia que ela estivesse sofrendo de uma crise tardia de ciúme infantil. Seis anos atrás, fiquei arrasada porque ela não foi ao nosso casamento. Seis anos atrás, pesquisei seus pratos prediletos e me descabelei para preparar um jantar que foi um fiasco retumbante. Até que Renata, a voz da minha consciência, me provou por A mais B que ela me vê como uma adolescente drogada que deu um golpe de sorte ao agarrar o pai dela. Antes que eu me matasse, Renata forneceu ainda mais provas de que, na verdade, quem deu sorte foi Jean-Claude, que conseguiu realizar a fantasia de qualquer homem no outono da vida e arrumou uma mulher com idade para ser filha dele, que eu podia ter sido uma estrela do rock mas preferi lavar as suas cuecas, e que o fiz por amor e não por dinheiro (até porque Jean-Claude não está exatamente montado em grana). Foi a partir daí que passamos a só nos referir a ela como "vaca". E, enquanto passava o telefone para Jean-Claude, que insiste em chamar a vaca de apelidos ridículos como "princesinha" e "gatinha", eu pensei puta que pariu, eu saí de um país onde as pessoas dão festas para me receber e agora tenho de aturar essa grosseria. Na quarta-feira eu estava menos revoltada, mas era dia da reunião que a Jackie frequenta e nós não tínhamos nos visto desde que eu cheguei. Nos falamos por telefone no domingo, mas não tinha graça. Quando terminou e fomos tomar café, a primeira coisa que ela pediu foi para que eu lhe contasse as novidades. Eu quase chorei de emoção por ver alguém além de uma criança de sete anos demonstrar algum interesse pela última semana da minha vida, o que só pode significar que alguma coisa está muito errada com ela (a minha vida, não a Jackie ou a criança de sete anos).

-Eu acho que a França já cumpriu a sua função – Jackie sentenciou, enigmática.

-Hmmm... como assim?

Diários de Malu - 1996 [AMOSTRA]Where stories live. Discover now