Mistérios da Meia Noite

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"Um adulador parece-se com um amigo, como um lobo se parece com um cão. Cuida, pois, em não admitir inadvertidamente, na tua casa, lobos famintos em vez de cães de guarda."
EPICTETO


"Quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha."
VICTOR HUGO







Nas noites frias e inquietas de Novembro, naquelas em que a segurança se resume a estar trancado em casa ao invés de vagar pelas ruas desertas, é que Francisco Nunes sai para caçar.

Ano passado foram três crianças e o quadro um só: no pescoço dos mortos uma fenda surgia na orelha esquerda e seguia até a base do pescoço, construía um sorriso monstruoso. A carne do ferimento jazia felpuda como um tapete persa, as beiradas mastigadas, a pele fustigada por algo viscoso. O sangue havia sido drenado como o de um porco no abatedouro.

Um trio de infâncias roubadas; um menino e duas meninas. Assim como no ano anterior e sete anos antes. A tradição de Francisco Nunes.

Por isso hoje, naquela que é a última noite de Novembro, o Caçador está à solta. Percorre as ruas desertas da pequena Divinápolis que agoniza em agonia. Os pais temem por suas crias, as notícias espalham sangue nos televisores e escolas estão fechadas. A polícia se perde num labirinto de denúncias falsas, trotes que entopem as linhas e congestionam qualquer pedido de socorro verdadeiro.

O próprio Francisco utilizou essa artimanha. Desviou o foco dos policiais para um bairro e foi para outro. Sete quilômetros de distância. Um trote, uma pista falsa e Francisco mata a primeira criança da noite.

É o motorista assassino quem dirige o furgão cinza que atravessa a Avenida Vaticano.

A lataria do veículo reflete a luz amarela da lua cheia. Poucas nuvens estão presentes e as estrelas são lágrimas no véu negro. O asfalto sustenta o deslizar do automóvel, o único na estrada.

O Caçador olha para o relógio no pulso e nota que faltam quarenta minutos para a meia noite.

As mãos estão conectadas ao volante e o pé afunda no acelerador como uma bigorna na lama enquanto os olhos afogueados do motorista vasculham o horizonte. O suor cascateia da testa de Francisco e inunda seus olhos. Desce pelo nariz e raspa por seus lábios fendidos. A palidez da face tão branca quanto cera de vela é a pintura da sordidez.

Ele olha para o retrovisor de centro e procura o cadáver apodrecendo lá no fundo, imerso na escuridão. O membro dentro da calça lateja ao lembrar daqueles gritos estridentes, o som da carne sendo rasgada pelos dentes afiados com lixa, o sabor do sangue fluindo pelo toque da língua naquele pescoço infantil.

Francisco fecha os olhos e sente tudo de novo.

E ao abrir os olhos resolve encostar o furgão. O lixão, o lugar escolhido para a desova das vítimas desse ano, está a treze quilômetros dali.

Nunes precisa ir e voltar para casa antes do nascer do sol. Antes de olhos curiosos surgirem nas janelas das casas para destruírem sua tradição. Mas o odor do cadáver de Thiana é tão forte e agradável que o dono do furgão não se contêm.

As mãos libertam o volante e encontram o zíper do jeans.

Invadem a cueca suja.

Pensar naquelas articulações retalhadas e nos músculos rompidos por seus dentes de tubarão, faz com que a maldade seja apenas efeito colateral da necessidade de drenar sangue.

E assim Francisco se distrai e dez minutos vão embora.

Quando termina vê um vulto surgir na margem oposta da avenida.

Morte na EstradaWhere stories live. Discover now