o palhaço na caixa

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21/10/89
"Eu vejo você em todos os meus sonhos e você está rindo e sorrindo e me abraçando bem forte como se nunca fosse me soltar e então eu acordo e isso me atinge com a mesma força de um soco. Você se foi e eu sei que nunca mais vai voltar"

10/11/89
"Eu tenho um sonho recorrente. Eu olho pra cima, pro céu. Bem azul. Você está lá e estende a mão pra mim. Mas então eu afundo e você desaparece. Eu afundo e o azul do céu se transforma no azul escuro e transparente da água gelada que me rodeia. Eu bato a cabeça e acordo sozinho".

23/11/89
"Eu ouço sua voz no silêncio, ela toca como uma música infinita quando eu tento dormir de noite e as vezes de dia também. Ela segue por longos minutos e isso me deixa louco.
Eu sinto seu toque no escuro.
Ainda dói quando seu nome corre pela minha cabeça. Dói demais, mesmo que não fisicamente".

16/12/89
"Eu ligo todos os dias, mas você nunca atende".

05/01/90
"Você falou que tinha acabado aqui, mas é mentira. Porque eu lembro de você e todos lembram. Você morreu, sim, mas não parou de existir. Não acabou, Mark. Nunca acaba".

Donghyuck pousou o lápis ao lado do caderno, sua respiração se encontrava um pouco acelerada, assim como os batimentos cardíacos. Era como se houvesse acabado de correr uma maratona, tal coisa que seria impossível de todas as formas.
Releu os textos de forma anacrônica até sentir lágrimas quentes escorrerem pela face.
Pegou o celular com as mãos trêmulas, pressionando o número costumeiro com precisão nas teclas, afundando os botões de plástico em desespero.
Pôs o aparelho rente ao ouvido, sentindo o material frio na bochecha quente.
"Sinto muito, o número que você discou não existe".
– Por que você não atende? – Donghyuck sussurrou para a linha muda, mesmo sabendo que não teria resposta – Mark? Mark…
Mais lágrimas caíram, assim como o celular que foi ao chão, se perdendo debaixo da cama.
Donghyuck olhou através do vidro da janela, observando o dia nublado, cheio de nuvens dos mais diversos formatos. Foi se acalmando aos poucos, cessando as lágrimas e se livrando daquele nó dolorido que queimava na garganta.
– Tente escrever sobre ele, sobre o que aconteceu, ou sobre qualquer outra coisa – o Dr. Youg Jin havia falado – Tem coisas que só pioram se tentarmos esquecê-las. Você tem que tentar passar por cima disso, Donghyuck, mesmo que pareça impossível agora.
Dizem que tudo de ruim que acontece é uma preparação para as coisas boas que estão por vir. Donghyuck não acredita nisso. Não mais, pelo menos.
Nos primeiros dias após aquele acidente – era assim que todos costumavam denominar o ocorrido –, Donghyuck não tinha lembrança nenhuma, não sentia nada, não sabia nada. Isso devido ao trauma por ter batido a cabeça em uma pedra quando afundou naquele rio debaixo da ponte. Ainda tinha a cicatriz, mas não era coisa muito grande, o mínimo para agora lhe trazer lembranças ruins sempre que olhava no espelho.
Depois de algumas semanas fazendo terapia com o doutor Young Jin, Donghyuck recuperou aquela falha na memória, o que no momento pareceu a pior coisa do mundo para seus avós e Jeno, que toda via preferiam que ele não tivesse de lidar com aquelas lembranças tão dolorosas. Mas mesmo que fossem tão terríveis, era a verdade, e Donghyuck não abriria mão dela. Muitas vezes apenas queria esquecer, mas não ousaria perder todas aquelas lembranças em relação a Mark, não suportaria mesmo que isso lhe proporcionasse uma vida mais tranquila. Tinha de se agarrar a alguma coisa, mesmo que machucasse as mãos no processo.
Donghyuck fechou o caderno e o guardou na gaveta ao lado da cama. Respirou fundo e guiou a cadeira de rodas para fora do quarto, ainda estava tentando se acostumar àquilo. Eram incontáveis as vezes em que tentava se levantar e andar inconscientemente, e nenhuma delas havia resultado em algo bom. Outras vezes ele apenas tentava de verdade, consciente, tentando se colocar em pé e andar, pensando que todo aquele tempo sentado tivesse lhe beneficiado de algum modo. Mas não. Ele caía de novo e bufava frustrado. Era agoniante passar todo o tempo sentado. Mais agoniante ainda era pensar que um dia iria se acostumar àquilo.
– Eu vou sair – falou para Jeno que estava na cozinha, lendo o jornal e circulando o que mais lhe interessava. Fazia alguns dias que ele procurava por um emprego de meio período no intuito de ajudar os avós com as despesas da casa que haviam aumentado consideravelmente desde o acidente.
– Hyuck – Jeno levantou da cadeira ao ouvir a voz do irmão e se aproximou, deixando o jornal sobre a mesa – Tá tudo bem? Você não comeu nada hoje, nem desceu 'pro almoço.
– Não 'tava com fome.
– Mas agora você 'tá – Jeno sorriu gentilmente, empurrando a cadeira de rodas até a mesa – Vou fazer o super sanduíche especial do Jeno pra você.
Donghyuck concordou com a cabeça, sorrindo minimamente enquanto o irmão ia até a geladeira pegar o necessário.
Jeno havia mudado bastante desde o acontecimento. Havia mudado tanto que, mesmo que tivesse se tornado mais responsável e prestativo perante Donghyuck, o mesmo prefiria o irmão como antes. Mas nada era como antes e, consequentemente, nem o próprio Donghyuck, que muitas vezes só queria que as pessoas ao seu redor voltassem a agir como se ele não existisse, como se não fosse importante. Não que agora fosse, mas aquela cadeira lhe trazia alguns privilégios que não fazia questão alguma de ter.
Jeno sorriu para o mais novo ao colocar o prato com o sanduíche na sua frente. Um sanduíche monstro, com frango grelhado que sobrou do almoço, tomate, alface, picles, bastante queijo e mostarda.
– Obrigado – agradeceu antes de pegar o pão em mãos e dar uma mordida um pouco maior do que conseguisse realmente engolir.
Donghyuck emitiu um som de contentamento, deliciando-se com o sabor do sanduíche. Fazia algum tempo que não saía do quarto para comer. Na verdade fazia tempo que não saía para nada, por isso não estranhava a surpresa de Jeno ao finalmente aparecer na cozinha.
– Você... Tá bem? – Jeno perguntou, cruzando os braços sobre a mesa e suspirando após a pergunta. Sabia que era uma pergunta tola, mas queria de alguma forma chegar até Donghyuck.
O Lee mais novo parou de comer e pousou o sanduíche no prato. Um silêncio mortal tomou conta da cozinha, apenas se ouvia o ponteiro do relógio indicando os segundos mais longos que o normal que se passaram antes de Donghyuck abrir a boca.
– O que você acha? – perguntou, sério – Não estou sendo irônico. Quero saber se você realmente acredita que eu possa estar bem depois de tudo o que aconteceu. Por que eu queria acreditar que sim, mas eu sei que não.
– Desculpa, Hyuck, eu…
– Não, tudo bem – Dongyuck suspirou, batendo com as unhas curtas contra a mesa – É só que… é difícil aguentar esse peso, e... As vezes eu me sinto tão egoísta…
– Ouça – Jeno falou, a voz dura como concreto – Não é sua culpa.
– Eu sei, mas…
– Não. Ouça – Jeno pegou ambas as mãos de Donghyuck, apertando um pouco, mesmo que delicadamente – Não é sua culpa. Não é sua culpa, Hyuck.
Aos poucos os olhos de Donghyuck se encheram de lágrimas novamente. Era incrível como nos últimos dias o estoque delas parecia ser infinito, vinham a toda hora e as vezes sem aviso prévio. Sentia que chorara naquelas duas semanas tudo o que não havia chorado durante uma vida inteira, ou até outras vidas mais. Mas por mais que tentasse segura-las, engoli-las, não conseguia.
Jeno levantou e contornou a mesa, o que pareceu uma distância um tanto longa comparada a vontade que Donghyuck tinha de sentir o irmão o reconfortando. E quando sentiu os braços ao seu redor, o abraço delicado que logo se tornou apertado, Donghyuck chorou ainda mais, sentindo a fragilidade o consumir por um momento, sentindo os cacos dentro de si se partirem ainda mais, mas não tão afiados como outrora. Sentiu força naquele abraço, a força que precisava.
Jeno fez com que Donghyuck deitasse a cabeça em seu peito e apoiou o queixo contra a cabeça do irmão, deixando um beijo perto da orelha pequenina antes dele se afastar, devagar, como se temesse que os cacos voltassem a cortar seu inteiror.

cool kids | markhyuckWhere stories live. Discover now