estrada para o fim do mundo (sam)

241 17 41
                                    



// panic - the smiths // homemade dynamite - lorde // crumb - locket // 

"Eu moro numa casa com telhado de zinco e, toda vez que chove, consigo ouvir meu cérebro. Está se movendo, vai e volta." - Locket 

O homem do fim do mundo é um homem sem rosto. Não sei como ele chega e nem como vai embora, mas é mais ou menos assim:

Os Kennedy hasteiam a bandeira dos Estados Unidos bem alto na sacada do terceiro andar e convidam os mais tradicionais da cidade para um churrasco no começo da tarde. Numa vizinhança não muito distante daqui, eles cantam o hino nacional, pilotando seus barcos motorizados. O resto do dia atende às festividades de todos os anos: os desfiles, os foliões rodopiando na rua, os fogos de artifício perto do anoitecer e as freiras do convento praticam suas preces para outros desastres naturais e todas as pessoas que precisam.

De noite, é quando tudo acontece.

As pessoas fazem muitos planos nesse dia, mas eu, particularmente, não tinha nenhum. Nenhum que interessasse o homem do fim do mundo. O programa do Jimmy Rivera, aquele com a grande roda neon e os prêmios escandalosos, não era bem um plano e fazia com que eu me sentisse estranhamente sozinha.

Enquanto a careca do apresentador resplandecia na televisão, lustrosa e emblemática, eu o imaginava voltando para casa aos tropeços, sozinho e embriagado. Apresentava um programa noturno que apenas pessoas tão miseráveis quanto o próprio Jimmy Rivera perderiam tempo assistindo, sozinhas em casa, bem nos feriados. Nas sextas feiras. A roda da fortuna giraria e você tomaria um gole de cerveja, olharia em volta e se sentiria extremamente letárgico e vazio. São sensações que você silencia, aprende a ignorar.

Sextas feiras não são dias suicidas. Esses são os domingos. Dias agourentos. Dias de ressaca. O mar se levanta mais cedo e é mais voraz e grosseiro (como um caminhoneiro quarentão), e o barulho do radinho de pilha na varanda é sobrepujado por ondas e ruídos de motores de barcos na costa. A maresia come o lobo frontal como leões devoram gazelas. Domingos são traiçoeiros, mas ás vezes eu os confundo com qualquer outro dia da semana.

Por isso eu tive que sair.

A ligação de Leo veio no momento exato.

Festas não são meu forte. Nenhum tipo de festa. Seja eu a anfitriã, convidada legítima ou ilegítima, parece que elas simplesmente não me querem lá. É necessário ser bom em conversa fiada para se dar bem em festas, conversando com estranhos.

Charlotte Mendonza já gostava de conversar com estranhos quando me conheceu. Não sei se gostava de festas, mas os motivos que a tiraram de casa no meio de uma chuva torrencial, usando galochas vermelhas e uma capa de chuva, talvez fossem parecidos com os meus. Descobriria isso mais tarde, quando os eventos cataclísmicos daquela noite me rendessem uma fiel escudeira e algumas escoriações.

Quero deixar aqui um aprendizado que vocês devem levar para posteridade: não aceitem bolinhos de estranhos. Nem mesmo os de framboesa com creme por cima.

Depois de alguns minutos de conversa fiada com Gillian Jenkins e Matt Romero, dois gêmeos siameses separados que conseguiam ser piores do que uma hidra de dez cabeças, algum deles (não me lembro qual) me ofereceu um cigarro e um bolinho. Eu aceitei os dois, primeiro porque precisava fumar e eu era uma fumante de ocasiões específicas, depois porque estava com fome. Um cigarro virou três e três bolinhos viraram seis, mas a receita dos bolinhos estava levemente alterada. Eu deveria ter desconfiado. Ninguém serve bolinhos em festas. Especialmente bolinhos de framboesa com creme.

(Você ganhou na loteria e agora está drogada. Bolinho premiado!)

O céu abriu uma boca enorme e me engoliu como um monstro noturno. Nadei nas estrelas como quem nada em algo imensamente azul e imensamente triste, um bebê no útero espacial da via láctea.

Gillian Jenkins e Matt Romero desapareceram logo em seguida. Não me lembro de sequer uma palavra trocada com eles porque simplesmente não foi importante. Apenas os bolinhos.

Flutuei, flutuei e flutuei. Framboesa e músicas alegres formigavam no céu da boca, a sensação de membros leves se arrastando por entre os dentes e tomando conta de todo o corpo. Se eu estalasse os dedos, fogos de artificio explodiriam da minha garganta.

A parte em que eu entro na piscina é um pouco esquisita. Não lembro quando tomei essa decisão. Lembro-me do meu corpo confortavelmente relaxado e dos membros esfacelados como penas. Lembro de esquecer como de fato é ter um corpo e fazer dele um objeto a parte, me sentindo no céu com os diamantes.

Imensamente azul e triste.

Estiquei o corpo e boiei na água. A beleza negra do último anoitecer caiu na minha direção de paraquedas.

A primeira parte de Charlotte que eu vi foram suas galochas de chuva. Vermelhas, vermelhas incandescentes, minha cor favorita, se destacando na luz pálida e lunar.

- A Lua parece um ótimo lugar para se morar essa noite - Comentei casualmente.

Ela sorriu.

- Acredito que primeiro você tenha que arranjar um jeito de chegar lá.

- Eu já estou chapada o suficiente para não precisar de transporte apropriado. - Eu rodopiei na água. - Eu poderia voar.

- Isso é injusto com os meros mortais como eu. - Reclamou, dessa vez se abaixando na minha altura. Da mesma forma, continuava mais alta.

- Posso te dar uma carona.

Nadei até a borda e me apoiei nela, os braços ameaçando fraquejar sob o peso que de repente pareceu demais para suportar.

Ela tinha cabelos negros como cortinas de nanquim. Sobrancelhas grossas e olhos de um castanho profundo, toda comprida, como um sicômoro. Era uma altura desconcertante e ao mesmo tempo graciosa, contornada pela escuridão noturna e a capa de chuva de amarelo solar.

Ver Charlotte fez meu coração acelerar em quinze batidas diferentes e paralelas, uma para cada lado.

Ás últimas pessoas vivas na terra, Charlotte e eu. Galochas vermelhas e capa de chuva amarela. Botas encharcadas e roupas pesadas me ancorando no fundo da piscina.

Quando duas pessoas precisam se conhecer, o universo se encarrega de promover o caos e toda a adrenalina que vem com ele. O herói precisa sair de casa para combater o crime. A princesa precisa descer da torre para ter um final feliz. Peter Parker precisa ser picado por uma aranha, Marty Mcfly precisa entrar no DeLorean e eu só precisava continuar respirando um pouquinho.

O destino é uma coisa engraçada.

Nem sempre ele te entrega um grande amor shakespeariano.

Ás vezes, trata-se do seu melhor amigo puxando uma conversa fiada com você sem saber que um dia ele seria seu melhor amigo. Grandes amizades começam assim, por acaso.

Essas amizades ocasionais têm aventuras incomparáveis e ótimas histórias para contar.

Nesse caso, toda conversa fiada que me aterrorizava foi casual e introdutória. Prelúdios de todas as noites que passaríamos acordadas confidenciando traumas de infância e coisas imbecis.

Charlotte e eu, as últimas pessoas vivas de Harbour Bay.

Pelo menos naquela noite.

- Eu sou Sam. Samantha. Jane. Chame do que quiser.

- Charlotte. - Respondeu. - É um prazer ser a última primeira pessoa que você vai conhecer no Fim do Mundo.

Eu sorri.

Eu Não Fui ExtraordinárioWhere stories live. Discover now