1. O Badalar do Sino

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Quando batia o sino da Torre Alta, queria dizer que alguma coisa de muito ruim acabara de acontecer: todo mundo em Polo Norte sabia disso

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Quando batia o sino da Torre Alta, queria dizer que alguma coisa de muito ruim acabara de acontecer: todo mundo em Polo Norte sabia disso. Sebastiana tinha que dar o braço a torcer. Seu amigo Rômulo bem que tinha lhe avisado, tantas vezes: se adaptar ao cotidiano invernal do lugar não seria nada fácil. Nem que fosse uma badalada de cada vez.

Enfiando suas botas recém-adquiridas na neve gelada, a moçoila abandonou o conforto de seu chalé para entender qual era, afinal, a raiz de toda aquela confusão que seus novos vizinhos aprontavam do lado de fora. Era um mar de duendes que não se acabava mais, a rua. Um rebanho de orelhas pontudas e gorros coloridos lotando o olhar, o burburinho desesperado da multidão se multiplicando a todo canto como neve se amontoando pelo chão.

Não era aquele, entretanto, o barulho que fez as orelhas de Sebastiana formigar em aflição.

O sino perturbava o ar, eufórico. Era como se o troço fosse vivo e o próprio vento lhe gritasse cidade adentro, o chão coberto de branco tremendo aos seus clamores. Um arrepio intenso subia os braços da moçoila, fazendo-a engolir em seco, sem entender o que acontecia.

Foi quando aconteceu.

Uma luz passou a tomar conta de Sebastiana, enchendo o corpo da duende com centelhas piscantes que faziam o coração da coitada explodir. E ela brilhava, solar: brilhava e brilhava, iluminando o branco da rua e o azulado do céu de dourado. Brilhava, brilhava e, depois, desaparecia. O corpo da moçoila era agora composto de vagalumes translúcidos, no que seus dedos diziam adeus àquele plano como que sendo apagados pelo soprar do vento e tudo começava a parecer meio borrado ao redor. Sebastiana sabia bem o que lhe estava acontecendo, contudo; já experimentara aquela sensação mais de uma vez em sua vida.

Teletransporte.

TILINTIM!

Se, num segundo, tudo o que Sebastiana via era uma rua de casebres cobertos de neve e duendes eufóricos se desesperando, noutro segundo um par de olhos assimétricos surgia, invasivo, de olho no seu olhar. A moçoila piscou, surpreendida, encontrando a íris branca de Alafina Saturnália quase que penetrando sua alma de fora para dentro. O sino da Torre Alta ainda soava lá fora quando Sebastiana soltou seu grito, assustada, no que a velha de olhos divergentes abriu um sorriso cheio de dentes.

― Aí está você, Noelo! ― exclamou a duende, sem esquecer de ser ranzinza, para que a outra soltasse um suspiro pouco impressionado em sua direção. Alafina tinha sempre aquela única expressão na cara: total indiferença para com o universo que a rodeava, como se todas as coisas do mundo fossem compostas de átomos e moléculas de descontentamento. ― Você demorou pra aparecer, garota. Quase que eu passo sua primeira missão pra outro duende capaz de aparecer na hora certa. Sempre soube que não devia confiar em forasteiros do sul...

Afastando-se da duende ranzinza, Sebastiana Noelo abriu um sorriso forçado no rosto, tentando parecer o menos irritadiça o possível com a velhaca.

― Desculpe, senhora. Ainda não estou acostumada com... hã, os jeitos da cidade ― falou ela, inventando da boca para fora a primeira coisa que lhe cruzasse a cabeça. Não chegara a mentir, por outro lado; Polo Norte ainda lhe parecia uma dimensão paralela àquele ponto. ― Não vai acontecer de novo.

Os assombrosos olhos descombinados de madame Saturnália (um branco feito pérola, outro preto que nem carvão) se estreitaram na direção de Noelo, no que a fumaça verde do cigarro da velha se erguia que nem cobra até o teto da sala. Sebastiana viu a outra fingir um sorriso, tal qual a moçoila acabara de fazer.

― Polo Norte é mesmo uma cidade muitíssimo movimentada, eu entendo ― concordou a anciã, batucando suas unhas compridíssimas em cima da superfície lisa de sua mesa oficial. Perto dos dedos da duende, um saquinho fechado deixava escapar um sinuoso brilho dourado. Sebastiana ficou imaginando o que deveria ter ali dentro. ― É de se esperar que uma sulista como você não consiga acompanhar o ritmo dos povos civilizados...

Um formigamento irritante se apoderou dos dedinhos no pé de Noelo. Aturar desaforos de Saturnália devia ser a principal competência para aquele cargo. Descontente, a moçoila mandava para dentro da garganta toda angústia que as palavras de Alafina lhe traziam, fazendo de um tudo para manter a compostura e não estrangular a velha. Certamente, haveria consequências das mais terríveis para quem tentasse atacar a chefa da Intrépida Guarda Real do Polo Norte.

― A senhora pode me dizer que missão tem para eu cuidar? ― quis saber a moçoila, focando-se no que lhe era importante e tentando ao máximo varrer para fora quaisquer pensamentos adjacentes. ― Teria algo a ver com esse sino invernal tocando? A senhora não imagina o alvoroço que isso está causando lá fora...

Pouco impressionada, Alafina mantinha as garras cintilantes a batucar contra a madeira da mesa, quase perfurando o misterioso saquinho brilhoso ali do lado, os olhos descombinados de dragão perfurando a postura enrijecida da outra.

― Caso a senhorita não saiba, o sino da Torre Alta toca apenas durante as mais tétricas das ocorrências ― explicou a duende, imponderável. ― Logo não é nem de longe espantoso o fato de a população de Polo Norte ficar alvoroçada ao ouvir o badalar do dito cujo. Algum ser depravado invadiu a Floresta Áurea. Um assunto desses precisa, portanto, ser tratado pelos duendes mais capazes e preparados da cidade, que estejam prontos para atender emergência tão alarmante.

Compreendendo as palavras de madame Saturnália, Sebastiana fez que sim à explicação da velha.

― Pois pode contar comigo para investigar isso, madame. Não estudei Resoluções de Crimes Misteriosos por seis anos à toa. Na minha cidade, eu era a melhor investigadora da equipe. Pode acreditar, madame Saturnália, eu não irei decepcionar a senhora! Estou mais que pronta para assumir essa missão.

A risada rançosa da duende mais velha veio como adagas de ferro esfaqueando o coração de Sebastiana. Fechando a cara e sentindo as esperanças murcharem, a moçoila viu Alafina parar de roçar as unhas na mesa para apontar na direção da outra um dedo acusador.

― Essa foi uma das coisas mais absurdamente hilariantes que alguém me disse hoje, Noelo. Muito, muito engraçado ― confessou, sorrindo como uma criança, suas várias rugas comprimindo uma a outra. ― Mas não. Esta não é será a sua missão. O que tenho em mente para duendes como você é algo um pouco diferente. 

 

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