Possessão.

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Nunca fui muito chegado a nenhum tipo de religião. Apesar de meus pais e avós irem aos templos em todas as datas festivas, sempre preferi me manter firme na ideia de que o bem e o mal vivem dentro de cada um e que, para todos os efeitos, você escolhe quem é o seu deus e onde é o seu inferno. Isso  era uma certeza para mim, que acima de qualquer oração ou súplica, nossos destinos não existiam, nada podia ser programado e isso, numa visão simplista, nos transforma em uma confusão de acontecimentos e escolhas.

Essa era uma das poucas coisas que eu tinha como certa na vida.

Então fiquei realmente surpreso quando, no meio daquela situação que não deveria ser crítica, ouvi palavras que se assemelhavam a uma prece e descobri que elas saiam da minha própria boca. Só torcia para que os deuses não fossem rancorosos ou pior, tivessem senso de humor.

Ergui meu punho fechado e encarei a mulher que estava na minha frente, Sarah era uma morena baixinha que tinha fixação por roupas rodadas e com babados, naquele dia ela usava um vestido rosa que era visualmente horrível, mas cumpria o seu papel e a deixava frágil e feminina. Talvez fosse proposital, uma estratégia para despertar o meu lado cavalheiro. Já conseguia lembrar dos inúmeros conselhos que o meu avô deu ao longo de sua vida, um deles envolvia algo sobre sempre tomar as dores de uma mulher. Procurei chutar essas lembranças para um canto obscuro da minha mente, prometendo a mim mesmo que as reconsideraria em outro momento.

Sarah ergueu seu punho pequeno imitando minha posição como um espelho, por um segundo considerei as consequências que viriam se desse um movimento em falso e fechei os olhos antes que proferíssemos as palavras decisivas:

- Jo-ken-pô*.

O grito animado de Sarah foi a única indicação que precisei. Abri os olhos e praguejei baixinho, ela havia mantido a mão em punho e esmagado a minha tesoura imaginária. Recebi olhares de pena dos colegas que me cercavam e alguns deram batidinhas nas minhas costas, desejando boa sorte e já voltando para suas respectivas mesas. A disputa havia sido difícil, gastamos metade do nosso horário de almoço para decidir quem ficaria com aquela tarefa indesejada e não conseguia acreditar que no final de tudo, eu havia sido o escolhido.

Acontecimentos e escolhas, grande merda.

-Eu sinto muito, de verdade.- virei em direção a voz, Sarah estava com as mãos juntas na frente do corpo, os olhos castanhos e grandes me encarando com uma mistura de pena e alivio.- Também não queria que fosse você.

- Foi justo.- dei de ombros com um sorriso sem dentes.- Eu só posso aceitar.

-Sim, mas as pessoas exageram às vezes...- ela tentou me confortar, não sabendo mentir e corando no meio da frase.

-É, eu sei.- coloquei as mãos nos bolsos da calça.- Nunca é ruim como falam.- trocamos um risinho nervoso e eu acenei para ela, me afastando para voltar ao trabalho.

Sentei com um suspiro na minha cadeira giratória, o cubículo que era considerado a minha sala parecendo terrivelmente menor. Encarei o notebook que estava na minha mesa sem vê-lo, eu ainda tinha coisas para fazer antes de levar os documentos. Olhei para os papéis que eu deveria estar redigindo e os ignorei por um momento.

Trabalhava na EyD há quase um ano. Depois de um exaustivo processo seletivo, consegui ser contratado para uma das maiores empresas de publicidade dos EUA e usava meu diploma de Marketing pela NYU para editar documentos e organizar arquivos. Já havia aceitado que o meu crescimento acontecia de forma gradual, já que quando comecei a trabalhar para a empresa ficava restrito ao terceiro andar, porém, depois de seis meses de esforço, fui transferido para o quinto. E um avanço lento ainda é um avanço.

WORKING MAN!Where stories live. Discover now