Romeu e Romeu

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Uma chuva branda ameaçava perturbar a tranquilidade da casa dos Pricelli. Luccino havia dormido com o som do rascunho de tempestade que começara há pouco tempo. O restante da família também, cada um recolhido em sua clausura, sono pesado após um longo dia de trabalho.

O mecânico italiano, logo cedo, teve de lidar com um ataque de ciúmes de Otávio - afinal, quem ele queria enganar... Às vezes essa "super amizade" entre os dois extrapolava todos os limites, e Otávio era aquele que mais pendia para um lado da corda bamba. Por tanto pensar nas cenas que constantemente se repetiam entre os dois, desabou cansado na cama para tentar acalmar a energia que pairava em seu corpo e espírito. Ele nem teve tempo de retirar de si mesmo o caos do dia inteiro, como algumas manchas de graxa dos carros da oficina.

Mas a chuva branda apenas tornou seus pensamentos mais anuviados. Para quê adiar o afogamento se já estamos molhados até a borda? Um barulho no telhado o fez despertar de súbito, indicando que talvez os pingos d'água estivessem começando a ficar mais agressivos. E de novo as gotas, de novo e de novo.

Foi quando Luccino se deu conta de que não era um mero barulho de chuva ameaçando se tornar forte. O ruído vinha da janela. Ele se levantou, mas não completamente de pé. Ainda se alimentava do ruído, lá de sua cama, com desconfiança. Logo tal barulho não podia ser mera coincidência, e o jovem se aprumou para verificar do que se tratava.

Aproximando-se um pouco da janela, duas mãos ansiosas e molhadas abriram-na, sozinhas. Luccino enrubesceu ao deparar-se com a figura úmida de Otávio, o capitão do exército do Vale do Café.

"Capitão? O que o senhor faz aqui?"

"Luccino, acho melhor você me convidar pra entrar, porque essa chuva..."

"Ah! Entra, entra... Essa chuva tão de repente!"

Otávio deu um meio sorriso e pegou numa das mãos do italiano para se equilibrar enquanto pousava as duas pernas no chão, da janela para dentro do quarto. O capitão reparou que tocava nas mangas espessas da camisa de Luccino, o que não era de seu desejo. Ou talvez fosse, para reparar os sentimentos confusos que habitavam dentro dele. Tocar o tecido da roupa de Luccino se aproximava, ainda que bem pouco, da sensação de estar tocando sua pele viva, pulsante, quente. O gesto durou uma fração de segundos, o bastante para deixar ambos desconcertados sem nem perceberem.

"Olha só, Otávio. Molhou sua melhor roupa!"

Otávio olhou para si mesmo.

"Ah não, tudo bem, Luccino. Era uma emergência. Só que eu devia ter batido na sua janela mais cedo... Quer dizer..."

"Você tava esse tempo todo olhando pra minha janela?", riu o mecânico.

"Claro que não! Eu só não sabia se era o quarto certo!", aparvalhou-se o capitão, desconcertado de ser pego em flagrante. "Mas aí começou essa chuva e... Tive que arriscar..."

Os dois olharam um para o outro. Luccino esperava. Otávio o contemplava.

"Então?", o italiano quebrou o silêncio.

"Ah, é... É... Bem, nossas aulas de esgrima. Eu queria saber quando podemos praticar! Era isso! Isso."

"Amanhã. Amanhã começamos. Estava tão ansioso por uma revanche que não podia esperar até amanhã?"

Otávio baixou o olhar, mordendo os lábios e percorrendo o corpo de Luccino até chegar diretamente em seus olhos. A chuva aumentara de intensidade, abafando quase que por completo a conversa, mas os dois falavam em sussurros para que ninguém na casa ouvisse.

"Eu realmente... Não podia esperar."

"Porque não podia?", perguntou Luccino.

"Achei que sua família pudesse não aprovar nosso nam... Nossas aulas. Você sabe, essas coisas são um tanto violentas, eu tinha que ter a sua certeza. Você sempre pareceu um rapaz tão delicado..."

"É por isso mesmo que quero aprender. Preciso. Já sofri algumas ameaças de Xavier e não podia ficar indefeso. A minha família... Ela aprova o nosso namo... As nossas aulas."

Otávio cruzou os braços e olhou para a boca do mecânico. Um impulso qualquer - quem ele queria enganar? - levou seu corpo para bem próximo da presença de Luccino, olhando cada vez, cada vez para sua boca incrédula, convidativa. Havia algo ali...

"Lu-Luccino?", Ele gaguejou, querendo levar os dedos até o lugar.

"Hum?"

"A sua boca."

"Minha boca?", o mecânico estranhou.

"Tem algo nela."

"O quê?", E ele tentou levar as próprias mãos para o lugar onde imaginava que Otávio apontava, lances cegos que iam para lugar nenhum sem nada limpar.

"Algo aqui...", Otávio sussurrou, tomando a iniciativa de levar suas mãos até o canto da boca de Luccino, onde se escondia sorrateiramente uma vontade - e uma pequena mancha de fuligem. Otávio deslizou suave, seus dedos demorando mais que o possível naquele lugar. Ele logo percebeu o que fazia e, trêmulo, voltou ao seu lugar.

"Saiu?", Luccino tentou limpar-se mais uma vez. "Ainda tá sujo?"

"Não. Agora tá mais claro que nunca."

Nesse instante, a chuva deu sinais de trégua. Mas algo naquele quarto nunca cessava, uma presença quase palpável e energética que os atraía de si para si. Não trovejava, mas raios ameaçavam se espalhar na escuridão sóbria da casa dos Pricelli.

"Luccino, eu preciso ir. Você não pode se atrasar amanhã, ouviu?"

Ele riu.

"Não vou não, capitão. Não vou desobedecer o senhor!", Ele falou num tom sério para debochar, e Otávio riu, lembrando-se da severidade de Coronel Brandão com a ordem e a pontualidade. Retrucou:

"Aprume-se, homem! Amanhã veremos quem leva a melhor!"

Otávio sorriu e voltou para a janela, sentindo um pouco de lama em seus sapatos. Virando-se novamente para o quarto, o italiano ainda o observava com feições de tonto, enquanto o capitão ameaçava sua última despedida.

"Agora eu não erro mais, Luccino. A sua janela."

"Eu também vou procurar não errar, capitão. Amanhã, na luta de espadas."

Com amor, LutávioOnde histórias criam vida. Descubra agora