Breve ensaio sobre uma lição de humildade com os espelhos

À caminho de casa, observando os carros, estava imaginando como seria dirigirmos se não tivéssemos os espelhos retrovisores. Ocorreu-me então de escrever sobre a utilidade desse objeto (sim, gosto de escrever, especialmente sobre coisas aparentemente banais). No entanto, ao pensar em uma foto para o post, em um breve exercício mental, não veio à mente como tirar a foto de um espelho sem que ele mostrasse o que há em redor...

Lembro-me de alguns adesivos dos sanitários da UFMG, onde havia um trabalho sensacional de divulgação científica que falava sobre a história dos objetos. Vivia na universidade mais tempo do que em casa, no mínimo de 7h até 23h30 e por isso até decorei os textos dos adesivos, pois os via a todo instante. Um deles falava sobre a escova de dentes, mas o que me chamava mais atenção era o que falava dos espelhos. Dizia o texto que em um tempo distante, os artesãos venezianos fabricaram esse objeto, o que significava uma verdadeira disrupção e custava mais do que um navio (pense só, em tempos de expansão marítima, quanto valeria um navio?)...

O objetivo dos parágrafos anteriores é trazer luz a duas ideias chave: o fato do espelho refletir sempre o ambiente e o grande valor desse objeto. Ora, o que descreve a humildade? Não é exatamente esvair-se da vaidade de achar-se valoroso demais? Pois bem, o espelho cumpre essa função com exímia excelência. Ele vive em um ambiente sempre mostrando o que há ali, sem que no entanto queira aparecer. Não arroga glória pra si mesmo, apenas cumpre sua função com uma maestria ímpar. O leitor poderia então dizer, ele é um tolo, não tem imagem própria, sem personalidade, um paspalhão que fica parado o tempo todo, mas tudo isso não é verdade.

O espelho tem sim sua personalidade, e a imprime onde estiver. Seu formato, tamanho e concavidade o difere dos demais em sua função. Ele tem finalidades específicas e é muito útil. Observe como ele é tratado: vive em lugar de destaque; onde quer que esteja, as pessoas olham pra ele a todo instante; é usado para ampliar lugares bonitos; é sincero, refletindo tanto a beleza quanto a feiura; um amigo sincero pois mostra suas espinhas com clareza e ainda te ajuda a livrar-se delas; no supermercado, existem multiusos específicos para espelhos; pessoas anseiam que nos elevadores ele esteja, nos carros faz parte do design. O que mais chama atenção, na verdade é que, diferente de muitos outros objetos, costuma ser limpo com maior frequência, as pessoas se preocupam em mantê-lo impecável. A sujeira não lhe adere e sai dele com muita facilidade.

Observe que o espelho é um dos objetos mais humildes que existem. Se há luz, ele reflete, se não há ele respeita, mas nas construções egípcias era usado em um jogo para fazer com que um simples feixe de luz pudesse iluminar todo um ambiente. Como diria a aclamada frase dos Alcoólicos Anônimos: "Concedei-nos Senhor, serenidade necessária, para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguirmos umas das outras." O espelho faz isso extremamente bem.

Chama atenção no espelho a sua democraticidade. Todo objeto, em tese, pode se tornar um espelho, do ponto de vista físico. Basta para isso ter uma superfície tão escura e fosca o quanto possível e um vidro sobreposto, ou até menos que isso, um simples metal polido ou mesmo a água de um lago. Pronto, você já pode se ver do outro lado, como em lata de alumínio. Desde os materiais considerados mais nobres, como a prata, ou desprezados como a lata velha podem se tornar reflexivos. Até mesmo aqueles que nos parecem não ter um formato uniforme, ou aqueles que parecem ser curvados como se fossem um barriga (esses são até melhores, porque como se sabe, espelhos convexos aumentam o campo de visão.

Outro aspecto importante a se falar é da corruptibilidade do espelho. Enquanto ele entende seu lugar e cumpre sua função da melhor maneira, tudo lhe vai bem. Alguns espelhos, todavia, querem se fazer ser vistos e não mostram o ambiente. Quando isso ocorre, o que ele exibe é na verdade são suas manchas. Quando ele arroga glória, as pessoas logo o descartarão. Já ouviram a história do menino que foi considerado o mais humilde do mundo? Deram-lhe uma medalhe com a inscrição de seu feito, quando ele a usou ela se desfez. A humildade do espelho está em nunca achar que é tão grande assim.

Em geral, o espelho mostra uma imagem invertida da realidade (acho graça das fotos que as pessoas tiram com camisas na frente dele, fico tentando decifrar o que está escrito kkk). É inconveniente, eu sei, ter que imaginar o aposto ao olhar para ele, mas isso faz parte do objeto, ele apresenta sua perspectiva de mundo apenas. Não há juízo de valor, certo ou errado, ele simplesmente expressa sua opinião e as pessoas o ouvem com respeito (ou veem, melhor dizendo).

Os espelhos tem muitos amigos. Se regozijam tanto em sua amizade que quando dois espelhos planos se encontram paralelamente colocados, frente à frente, parecem ficar tão alegres em se verem que refletem um número infinito um do outro, e assim eles se sobrepõem até o infinito. A alegria de um contagia o outro (isso se chama validação, é o reconhecimento do outro). Nenhum fez grande a si mesmo, mas enxergou a grandeza do outro e a valorizou, de tal maneira que também foi valorizado.

Talvez um dos elementos que valha se considerar para a trajetória da vida seja ser como um espelho. As pessoas que apresentam traços do espelho imprimem sua personalidade no mundo, seu formato, sem contudo arrogar glória pra si. Preocupam-se em ser sinceras e íntegras, tendo ao seu lado pessoas que as auxiliam a aprimorar suas competências e corrigir suas imperfeições. Sobretudo, reconhecem o valor de cada outro ser que pode ter um formato diferente de si, mas que cumpre também sua função. O espelho valoriza suas amizades, e valida todo mundo que passa em sua frente mostrando a beleza de todo mundo.

Em nosso ambiente profissional, em nossa vida diária desafiadora, mas especialmente em nossas casas, que procuremos ser humildes como o espelho o é.