Nem te conto

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Dia desses precisei marcar uma consulta no posto de saúde, sabendo das poucas senhas dispostas por dia, decidi ir cedo. Cedo demais, na verdade. O dia estava frio e ameaçava chover, mas às 5h em ponto lá estava eu na fila. Bem, a fila era formada apenas por mim, enfiei as mãos em minha jaqueta e esperei clarear.

Passou-se algum tempo e nenhuma alma viva surgiu. Aquela rua não era iluminada, poderia ser meia-noite ou cinco da matina, não fazia diferença, no posto não havia uma luz acesa sequer.

Olhava para um lado e outro até notar um homem, pelo caminho que vim, a cerca de cinquenta metros. Há quanto tempo estava ali? Ele veio em minha direção lentamente, usava jaqueta e boné. Não era possível identificar seu rosto. Esperei o homem chegar, mas ele estava sem pressa. Andou alguns metros, parou, olhou para trás, conferiu a esquina. Estava desértico, só havia eu e aquela figura suspeita.

Suspeita? O que me levou a essa conclusão? Suas vestimentas, seu jeito hesitante de andar? Não sei, mas era bom traçar uma rota de fuga.
O homem andou em ziguezague pela rua, certamente me avaliando por outros ângulos. Eu poderia correr na direção oposta a dele, mas só me afastaria da minha casa. Não, não poderia correr, estava numa fila — no primeiro lugar da fila —, seria irracional sair dali baseado apenas em preconceitos.
Ele voltou a andar, sua lentidão era perturbadora. Estava decidido, não correria, não me daria esse desgosto. Mas porque tamanha vagareza? Era certo que ele percebeu que eu o notara, eu não conseguia virar o rosto para outro lugar. Estava atento, ele poderia apressar o passo, um vacilo e eu estaria condenado. Ou melhor, é como aquela história do sapo na água fervente, tem que aquecer aos poucos para que ele não pule fora, esse tipo de reflexão não precisa de textão no Facebook, ninguém reflete com esses textos. Só bastaria um momento de distração, um bocejo e ele surgiria do meu lado com mãos enormes e fortes em meu pescoço.

Parou novamente, dessa vez acendeu um cigarro, quem fuma às cinco da matina no meio de uma rua escura? Na verdade, daquela distância, pude concluir que ele era bem franzino se comparado ao meu porte físico, suas mãos eram normais, aliás.

Até poderia enfrentá-lo, não brigo com alguém desde a terceira série (que se me lembro bem, apanhei, era a minha irmã que salvava a minha pele), mas com a adrenalina alta e o coração quase saindo pela boca, seria como aquele ditado, ou mato ou morro, não havia mato ou morro para fugir, e como falei, não era opção. Estava ficando louco, é isso, como poderia supor que reagir era uma opção viável, não seria as mãos dele em meu pescoço, seria uma faca.
Ele acabou seu cigarro, olhou para trás mais uma vez e recomeçou sua marcha arrastada, como um carrasco que sabe a sua função.

O que fazer? O que fazer?

"Chegue logo de uma vez, homem!" gritaria, se não estivesse apavorado demais para isso. Ele finalmente chegou a poucos metros de mim. É isso, esse seria o meu fim. "Morto numa fila" diria os jornais, ou melhor: Primeiro da fila morto.

— Bom dia. — Ele falou meio receoso.
— Dia.
— Tá frio, né?
— Pois é. — Respondi, ainda um tanto desconcertado.
— Deve ser por isso que ainda não tem ninguém na fila.
— Pois é.
— Então acho que sou o segundo.
— Pois é.

Aos poucos, num misto de graça e vergonha, percebi que o homem estava mais assustado que eu. Pudera estar, um cara estranho numa rua escura não parava de encará-lo. Deve ter se sentido como o condenado que segue em direção ao carrasco.

Nem te contoWhere stories live. Discover now