Além das cinzas

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   O fogo degradava o térreo e subia para o primeiro andar quando Léo e Clara saíram pela porta da frente e desceram os degraus até a calçada. Todos os adaptados estavam ali. Alguns, sentados no chão, pareciam absortos demais em seus próprios pensamentos. Outros fitavam o prédio e a região em volta, que começava a ganhar curiosos; não demoraria para os bombeiros aparecerem, Léo percebeu. Outros tinham os olhos vermelhos de tanto chorar. Mas, no meu de todos eles, seus amigos os esperavam com uma expressão aflita, que logo desapareceu quando avistaram os dois.

   Léo fitou Amélia, que continuava ao lado de Alex. Ao vê-lo, a garota disparou a correr em sua direção; os cabelos desgrenhados, as bochechas sujas e os olhos com o habitual brilho que ele tanto sentiu falta. Algo​ havia mudado na menina, que já não mais o mirava com a decepção de antes. Existia saudade em seus passos apressados, e ele gostou de sentir aquele aconchego.

   Antes que a menina completasse o trajeto, Léo botou Clara no chão e retornou a forma humana, preparando-se para o verdadeiro reencontro, longe do fogo e das cinzas. Parecia uma eternidade, o tempo que tivera de estar longe dela. Sentia muita saudade, e só se tocou do tamanho daquele sentimento quando seus braços a envolveram e o beijo veio, natural, emocionado. Apertou o corpo dela de encontro ao seu, como se para verificar que estava acontecendo de verdade. E era real.

   Amélia começou a chorar.

   — Eu tava com tanto medo de te perder… — ela desabafou, enfiando o rosto em seu peito.

   Léo fitou Alex, que assistia a cena com uma feição estática demais para que fosse possível reconhecer algum sentimento guardado, bom ou ruim. Decidiu não se importar, não parecia haver nada demais entre os dois. Depois, fitou Janaína, que, incomodada, abaixou o olhar ao perceber que estava sendo observada.

   — Eu também… — ele afirmou, com um milhão de coisas passando por sua cabeça.

   Estavam novamente livres. Entretanto, ele não conseguia se sentir tão feliz com a notícia ao lembrar-se de que doutor Paulo havia escapado ileso. Com a vida do cientista intacta, a liberdade não era mais do que um documento sem validade; um instante passageiro. Esperava que não passasse tão depressa, todavia, pois queria muito voltar para casa. Queria muito rever sua mãe depois da exposição ao mundo. Tinha errado ao excluí-la dos seus problemas, mas seria diferente a partir daquele instante; enfrentariam juntos as consequências de sua aparição na tevê. Ele, sua mãe, Amélia e quem mais quisesse entrar nessa luta.

   E no meio de toda a comoção, Pedro se aproximou do amigo. Olhou para o casal abraçado, depois para Clara.

   — Cadê a Camila? — questionou, esperançoso, porém bastante sério. O silêncio veio como resposta imediata; longos segundos que se estenderam infinitamente diante da pacatez da capital nas noites de quarta-feira. Pedro riu, sem achar graça na situação. — Não…

   — Pedro — Léo chamou o amigo, enquanto afastava Amélia e volvia-se em sua direção.

   — Nãonãonão… — Começou a ir outra vez em direção ao prédio. Os olhos marejando a medida que entendia os acontecimentos. Léo o segurou, impedindo que prosseguisse com o péssimo plano. — Não! Me solta!

   — Pedro, calma.

   — Ela tá lá dentro! — As lágrimas desceram. — Camila!!

   Léo o abraçou forte, forçando-o a permanecer parado. O abraço, contudo, não era somente uma amarra.

   — Eu sinto muito…

   — Camila! — Ajoelhou-se, encarando o prédio, que expelia fumaça pelas janelas. — Camila!




   Camila acordou com um susto, buscando ar limpo em um inspirar intenso. A visão ainda estava turva; o mundo inteiro havia perdido a nitidez. Levou a mão ao pescoço, lembrando-se do sufocamento causado pela fumaça. Seu trato respiratório ainda ardia a cada vez que inflava o peito, como se houvesse inalado o próprio fogo.

   — Tá melhor? — ouviu uma voz masculina perguntar.

   Camila girou o corpo rapidamente em direção a voz. Um homem, sentado não muito distante de onde estava. Tentou enxergá-lo, mas a visão ainda era deficiente, e a iluminação não estava disposta a cooperar. Olhou em volta; parecia se encontrar em um quarto, mas as luzes parcialmente apagadas não deixava ter certeza de nada do que via.

   Ela tossiu. Os olhos lacrimejantes, também irritados com o gás.

   — Que lugar é esse? — conseguiu perguntar, escolhendo uma no monte das dezenas de dúvidas que começavam a pipocar em sua cabeça.

   — Conseguimos sair daquele lugar — ele respondeu.

   Só então Camila percebeu que já tinha visto aquele homem em outra ocasião. Ali, na penumbra, lembrou-se do velho que ocupava outra cela naquela espécie de porão do centro de pesquisas. O único prisioneiro além dela própria.

   Entretanto, olhando de perto e sem estar sendo empurrada pelos blacks, a ruiva percebeu que não se tratava de homem tão velho, como havia imaginado. Estava magro, os ossos apontando sobre o couro. Tinha rugas pronunciadas, e um cabelo mal cuidado. Os fios grisalhos, contudo, pareceram estar em maior quantidade na outra ocasião; poucos fios brancos despontavam aqui e ali, a maioria possuía uma cor de mel.

   — Mas… Como? — Lembrou-se da fumaça. — O que aconteceu lá?

   — Longa história… — O homem sorriu para a menina. Porém, mostrava-se abatido demais para que estivesse feliz de verdade. — Era um antigo plano de uma velha conhecida minha. Mas o que importa é que estamos fora daquele lugar. Enfim… — Ele esticou a mão em sua direção. — Meu nome é Fernando. Como você se chama?

Projeto Gênesis - Exposição Where stories live. Discover now