Último dia

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Passei boa parte daquela noite com os olhos colados no céu. Não havia nuvens, e as estrelas saltavam daquela enorme coberta negra que estava sobre nós. Sempre gostei de contar quantas estrelas eu podia enxergar. Quando era pequena, cinco ou seis anos, eu me sentava numa cadeira do terraço em uma das casas onde vivi com tio Lamb, e jogava minha cabeça para trás só para olhar o céu escuro. Havia milhares de pontinhos sobre mim, mas eu tinha três preferidos, que em alguns lugares também chamam de As Três Marias. Elas formam uma linha, e a terceira na ponta é um pouco afastada para o lado. Eu gostava de poder ver o céu e somente o céu, mais nada que me lembrasse que estava na Terra. De qualquer forma, acredito que a minha história vem sendo um pouco como a da terceira estrela, sempre um pouco afastada para o lado das suas semelhantes.

•••

Nós já estávamos viajando há quase três semanas. Jamie dividia o seu tempo entre a tripulação e nossas longas conversas sobre o futuro, principalmente sobre o bebê a caminho. Mas havia noites em que ele precisava ajudar em qualquer que fosse a tarefa no navio, e a mim restava o céu e as estrelas. Felizmente, não era tempo de grandes tempestades, e até então não havíamos enfrentado nada pior que algumas ventanias e chuva, tampouco enfrentaríamos. Decidi descer e me acomodar na nossa cabine enquanto Jamie não retornasse, se é que retornaria naquela noite. Já deitada, repousei as mãos sobre minha barriga em formato de uma pequena bolinha e senti o interminável sacudir do navio, como se estivesse há quase três semanas deitada em uma rede de balanços que nunca deixava de sacudir. Talvez o bebê gostasse, pensei. Segui os pensamentos sobre o bebê, ainda tão minúsculo dentro de mim, e acho que adormeci enquanto ainda sorria.

Na manhã seguinte, acordei sentindo os lábios úmidos de Jamie sobre a minha testa. Quando abri os olhos, achei que ele já poderia estar ali há algum tempo, me olhando dormir. Sem dúvida, a ideia de uma pessoa me observando dormir me causava um certo incômodo, mas não se a pessoa fosse Jamie.
- Não consegui voltar ontem à noite, Sassenach. Dumoncel precisou de mim para reorganizar as tarefas entre os homens. - disse ele em tom de lamento enquanto tentava encher sua mão com o que já aparecia de barriga em mim. - Quase dez homens deixaram o navio no último porto. Estávamos sem tripulação para tudo o que deve ser feito... - eu assenti com a cabeça e continuei:
- Acabei caindo no sono mais cedo. Acho que não estou mais tão enjoada com todo esse balanço do navio. Depois de tantos dias, me acostumei. - disse sorrindo. - E você foi realocado nas tarefas do navio, então? Não acho que já deva se dedicar tanto como eu sei que deseja... ainda está se recuperando. - Sentei-me sobre a cama apoiando-me sobre os cotovelos enquanto o olhei com certa censura.
- Sim, eu sei. Mas, na verdade, Dumoncel vai continuar precisando de mim para as tarefas mais simples do dia-à-dia, o de sempre.
Jamie sorriu; então, se aproximou de mim e, com os olhos cerrados, me beijou. Apoiei as mãos em sua nuca enquanto acariciava as mechas ruivas desfiadas pelo seu pescoço, decidi chegar mais perto para sentir a temperatura do seu corpo - sempre mais quente - sobre o meu. Estar ali, com Jamie, significava não desejar mais nada.

De repente, fomos retirados do torpor que momentos como aquele nos costumavam causar. Uma voz masculina e rouca gritou impetuosamente da parte de cima do navio:
- INGLESES! Os Casacas vermelhas estão vindo em nossa direção!!! Nos encontraram!! - Um silêncio curto se prolongou no que parecia ser a eternidade, então, a voz continuou. - Fomos traídos!!! Preparar a defesa! Homens, desviar rota! Mais velocidade!! Depressa!!!

Olhei para Jamie enquanto sentia todo ar do meu corpo desaparecer como um balão estourado por uma agulha fina. Ele me olhou de volta, o choque em seus olhos era tão intenso que percebi imediatamente que sequer me enxergava.
- Sassenach... eles... eles nos descobriram. Você não pode mais ficar aqui. - Eu hesitei, esperando que Jamie dissesse algo mais, algo que fizesse sentido. Mas se calou por completo.
- Jamie, nenhum de nós pode ficar aqui... Mas o que nos resta fazer?

Nesse instante, a porta da cabine foi esmurrada com um baque violento. Dois pés cobertos com botas que se estendiam por longas pernas e tronco, arrematados por uma cabeça comprida e careca, entraram na cabine. O olhar do Capitão Dumoncel, um francês carrancudo de talvez 60 anos ou mais, era assustador. Se já não soubéssemos o que ele havia visto cinco minutos atrás, diríamos que vira uma corja de fantasmas.
- Jamie... Sra. Fraser, vocês não podem mais continuar à bordo deste navio.

Senti a mão de Jamie apertar a minha, tão forte quanto ele considerava seguro para não quebrar os meus dedos.

Chegara a hora. Não podíamos mais permanecer assim.
***

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