Prefácio

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Se você está lendo este livro, pode ter certeza: não fui eu que o escrevi. Alguma interferência exterior, completamente alheia a minha pessoa, ocorreu. Logo após escrever a primeira frase soube com absoluta certeza que este livro jamais existiria. Explicarei em pormenores: restava sentado aconchegado no sofá com as pernas apoiadas na pequena mesa de vidro a minha frente, lendo os primeiros capítulos de "O Anticristo" de Friedrich Nietzsche e, embora a obra consagrada não tenha absolutamente nenhuma relação com a minha ideia, a inspiração surgiu na reflexão entre um capítulo e outro, como uma lâmpada brilhante igual àquelas dos desenhos animados clássicos. A genialidade da ideia do livro não escrito proporcionou um sorriso em meus lábios. Larguei "O Anticristo", me despi e entrei no chuveiro. Ainda carregando o sorriso orgulhoso e seboso no rosto, deixei o líquido vital escorrer pelo meu corpo. Assim como a água, na minha cabeça a ideia fluiu e em seguida foi ganhando forma, as palavras formando frases espetaculares, absolutamente inteligentes e ao mesmo tempo irônicas. As frases, por sua vez, iam se agrupando e formando um todo coerente, um quebra-cabeça complexo perfeitamente encaixado. Ali no chuveiro eu estava escrevendo uma obra-prima: já imaginava o livro na estante dos clássicos, indicação certa de leitura nas aulas de doutorado de literatura. Meu nome entre os escritores mais lidos da atualidade. Que genialidade! Uma ideia fantástica! Ao sair do banho, meu ego ainda radiante pela automassagem que recebera, ansiava pelo começo do trabalho, enquanto eu me enxugava na toalha macia e cheirosa que só um rei pode desfrutar. Quanto mais pensava, mais ideias floresciam e a certeza da arte em sua mais pura essência se agigantava dentro de mim.

Após acender as luzes, ligar o computador e esperar pela sua inicialização, alguma insegurança já formigava pelo meu corpo, mas eu desdenhava dela: bobagem - pensei. Sem muita demora, o processador de textos se abriu e aquela coisa chamada "Documento 01" surgiu em minha frente. Lá estava aquela infinidade gigantesca redundante em branco e a barra de status indicando "Página 1 de 1". As ideias então, de repente, pareciam cada vez mais distantes na minha cabeça, como se tivessem tomado o seu rumo junto com a água pelo ralo do banheiro. Eu sabia que não poderia vencer aquela imensidão de páginas que estariam por vir e aquele cursor me encarando, como se dissesse: "E aí, gênio? Cadê? Movimente-me, quero ver me fazer sambar o samba dos malandros por essas páginas! Onde está sua obra-prima, seu pedante? Vamos, mexa-me, ande! Escreva uma frase para ao menos dizer que tentou, ou será que nem tão pouco você consegue?". Ele piscando ali, no mesmo lugar, me encarando, rindo da minha cara e do coitado do meu ego avestruz que não sabia onde se esconder. Insistentemente o cursor ficou piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando, piscando. Lá está o cursor, sem parar, mas parado, repetitivo, que até me deu a vontade de usar da repetição de palavras em algum lugar do livro. Mas essa pequena ideia logo se dissolveu, pois eu carregava o desafio de escrever a primeira frase dessa história que, como bem já contei, não existe.

Sem dúvida, eu deveria fechar o programa, desligar o computador e não perder tempo com essa ousadia de achar que poderia ser capaz de escrever uma obra literária, quanta tolice. Algumas pequenas boas frases imaginadas não formariam um livro, de maneira alguma. De fato, tempo é dinheiro e minha situação financeira não é das melhores para perder tempo com a ideia de um projeto que não tem nenhuma chance de se concretizar. Contudo, por que não tentar uma frase apenas? O tempo com essa ideia estúpida já havia sido perdido, um pouco a mais ou um pouco a menos não faria tanta diferença assim. Pois bem, resolvi arriscar algumas batidas nas teclas e, com isso, tive a convicção da verdade absoluta da primeira frase - Se você está lendo esse livro, pode ter certeza: não fui eu que o escrevi. Aquilo me soou tão vazio, que me fez sentir um tolo, pedante, microcéfalo, panal de palha, estúpido, imbecil, idiota, acéfalo, burro, piegas, jumento, azêmola, camelo, asno, asneirão, abestalhado, abobado, abobalhão, aparvalhado, cretino, paspalho, panaca, bobo, boboca, banana, babaca, mané, estúpido, enfim tão tolo e seus sinônimos que só buscando num dicionário analógico da língua portuguesa para poder explicar com tanta ênfase. O objeto de consulta eu não teria a perspicácia de comprar e, mesmo considerando a hipótese de tê-lo adquirido, jamais teria levantado para pegá-lo, aberto no final, em seu índice, para procurar a palavra tolo e achar seus sinônimos. Sem dúvida, eu nunca faria isso, não tenho esse cacoete de escritor e, principalmente, teria muita preguiça em ter o trabalho todo de escolher sinônimos legais e engraçados para um livro que eu sei (e todos sabem) jamais existirá. Após o vazio da primeira frase conscientizei-me da pequenez da minha ideia. Como eu poderia ousar escrever um livro? Que audácia! O que me fez pensar que poderia ter uma grande inspiração original? Eu só poderia ser autor mesmo de um livro que não existe! É tão óbvio! Eu deveria voltar para o meu sofá e reiniciar a leitura do grande escritor, o gênio real, que estava expondo suas posições particularmente para mim antes, ou mesmo descansar de tratar de literatura e assistir relaxadamente, com a cabeça vazia, mais um episódio daquela série de que tanto gosto que está no final de sua quinta temporada. De fato, não tenho capacidade de escrever um livro.

Confesso que já escrevi uma história, que não vou contar de que se trata e que já ultrapassou a sua centésima página. Mas estou empacado. Já mandei o esboço, essas quase cem páginas, para alguns amigos próximos e a grande maioria se agraciou com a leitura, alguns reclamaram por mais páginas. Aliás, apresentar-me como um pretenso escritor para as mulheres é de extrema valia, transmito um tom enigmático, sedutor, talvez inteligente. Pobres meninas enganadas por meras palavras! Mal sabem elas que tudo não passa de uma farsa. Naquele esboço literário, o fantasma do cursor me venceu, igualmente como fez agora nesse livro natimorto. Não consigo mais sair da encruzilhada e desisti, jamais conseguirei concluir a história. Não sou capaz de escrever um livro. O pior é que, estupidamente, tentei ainda começar outro sem ter tido a capacidade de terminar aquele. Mas, já assumida essa derrota, vale a reflexão: o que é um livro? Um livro precisa ter começo, meio e fim? Por que a minha história inacabada não pode ser um livro? Já li tantos livros ruins, outros horríveis, alguns estrondosos sucessos mundiais em razão de grandes campanhas de marketing (essas sim, geniais) e o meu, só porque não conseguiu ser finalizado, não pode ser chamado de livro? Minha história não finalizada foi uma jornada de leitura, mesmo sem fim, para alguns. Afinal, o que significa um livro? Por que não poderia existir um livro sem história definida, apenas com declarações banais, palavras soltas, desconexas que só querem ser lidas? O que faz um livro? Um determinado número de páginas ou uma história determinada? Por que não poderia existir um livro de somente uma página? Por que não? "O livro de uma página só". Sem sombra de dúvidas, um ótimo título ele já teria, talvez até vendesse bem. Infelizmente, tal experimento literário imediato já teria chegado a sua quarta página e nem mais desse artifício sarcástico pode se servir. Realmente não era pra ele existir, disso tenho uma certeza enfática.

De fato, mesmo que esse livro que, tenho certeza, nunca foi escrito por mim, ultrapassasse a metade de sua quarta página, o que mais se poderia falar? Uma grande ausência de assunto tomaria conta do escritor e de poucas artimanhas ele poderia se utilizar para tentar enrolar e fazer o leitor crer que realmente se trata de um livro em seu modelo tradicional. Talvez agora o astuto homem por detrás das teclas tenha percorrido as páginas anteriores para reler e tentar inserir alguma coisa e dar corpo a essa história que não existe: encher de sinônimos, linhas inteiras de repetição, inserções sem conteúdo. Quem sabe até essa última frase tenha sido uma inserção posterior do texto original, uma inserção sobre uma inserção. Que engraçado seria. Mas não, não foi o caso. Quer dizer, quem poderia saber a não ser o escritor, que repito: não sou eu! Outra artimanha poderia ser a utilização de citações, que todo texto se abocanha, e já que a obra está próxima, à mão, vale o artifício: "Este livro destina-se a muito poucos. Talvez nem sequer um deles viva ainda". No caso presente, é possível ter a audácia ainda maior que a do filósofo em "O Anticristo": este livro destina-se a exatamente ninguém. Nem os mortos, nem os vivos, nem os que não nasceram ainda haverão de ler esse livro.

Seria também, num caso de desespero extremo, bastante conveniente para o escritor, completamente ridículo e horrível para tentar povoar de conteúdo e chegar pelo menos ao fim da quinta página, aquela que vem depois da primeira, segunda, terceira e quarta, AUMENTAR O TAMANHO DA LETRA, ou, quem sabe terminar o parágrafo para pular uma linha.

Mesmo assim, não há como negar, nada seria bastante para salvar esse livro. É inviável continuar uma história que não vingará. É hora de desligar o computador e deitar-me na cama. Essa ideia já nasceu morta, esse livro não pode existir. Chega dessa história. Fim!

FIM

Este Livro Não ExisteWhere stories live. Discover now