Capítulo 1 - Amora tem gosto de céu

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O mundo é prateado, mas as pessoas adoram se fingir de branco camuflado ou preto borrachudo. Ninguém é o que diz ser, e também não é o que pensa ser. Poderia discorrer um monólogo sobre os meus eu's de uma vida toda. Adoraria relembrar de gente que jurei amar pra sempre, e chorar pelas dores que pensei nunca cessar. Gostaria de ser uma Amora pura e juvenil, saltitando pelas ruas sem medo do perigo. Só que essa Amora não existe mais.

Encaro meu reflexo no espelho manchado pelo tempo, e me esforço para reconhecer as pupilas e as íris azuis que me observaram por uma vida inteira. Passo pelas madeixas castanhas desgrenhadas, o nariz arrebitado cheio de sardas e tento não me importar com os roxos contornando meus olhos, nem com os cortes nas têmporas. Essa mesma Amora, um ano atrás, estaria procurando espinhas no mesmo rosto.

Meus lábios estão sangrando pelo corte recente e o gosto é do mais saboroso ferro. Imediatamente me recordo do ardor e mãos fortes descontando a raiva em mim, até não restar mais ira que pudesse ser aproveitada.

- Amora, o Matheus está te esperando na mesa. — Camila, a minha única amiga do colégio, me cutuca com o cotovelo e retoca o batom nos lábios.

- Estou com vergonha, não nos falamos desde que ele terminou com a Karina. — Comento enquanto jogo jatos de água no rosto.

- Correção, Karina quem terminou com ele. — Camila revira os olhos e me segura nos ombros. — O Matheus... é meio complicado. Mas você também é. Os dois têm histórias difíceis e ruins com ex-namorados, e acho que conversar um pouco sobre isso vai te fazer bem.

- Não quero falar sobre o Jorge. — Respondo em um fio de voz.

- Ele está no passado, Amora. Um passado bem passado mesmo, faz quanto tempo que vocês acabaram? — Ela pondera enquanto batuca o indicador no queixo. — Um ano, talvez?

- Um ano e dois meses.

- Isso é muito tempo, Amora! Você precisa seguir em frente, e não ficar se estapeando por aí em boates com a atual do seu ex.

- Ela derramou uma Corona em mim! Isso foi um absurdo! — Arregalo os olhos por tamanha a audácia. — E teve a cara de pau de falar que foi culpa minha! Claro que eu queria me molhar com cerveja, meu sonho desde criança.

- Você não combina com sarcasmo. — Ela me analisa por alguns segundos. — Nem com essa roupa. Por que um vestido tão coberto assim? Não consigo nem ver seu pescoço.

Dou de ombros e balanço meu corpo de um lado para o outro, observando minha saia plissada se movimentar junto com o balançado. É um vestido verde exército de camurça, e extremamente comportado. Eu me sinto bem com esse estilo de roupa, valoriza minha pele e meus olhos, além de não me deixar desconfortável.

- Eu gosto.

Ela bufa e não diz mais nada antes de me puxar banheiro afora até o interior do restaurante, decorado com madeira rústica e sons de conversas paralelas. Os garçons apressados nos encara suplicantes para abrirmos o caminho, e assim eles possam atravessar, até que eu o vi relaxado, mexendo no celular e sustentando um sorriso frouxo no rosto.

Matheus.

O mesmo que sorriu para mim quando ninguém me acolhia no colégio, e me apresentou a namorada de longa data para ser uma amiga. Ultimamente ele parece tão distante da pessoa que conheci no primeiro dia de aula. Aquele Matheus era amoroso, gentil e confiável; quase um bom cachorro.

Algo me diz que ele não é mais assim.

- Oi, meninas. — A voz meio áspera me cativa. — Pedi uma jarra de suco de laranja para a gente.

O céu tem gosto de Amora Where stories live. Discover now