Allan Poe é um monstro

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Naquela época eu tinha oito anos, e particularmente naquele 5 de dezembro eu havia faltado à aula. Em casa, navegava pela internet. Percorria um universo entediante de sites, via coisas pela metade, ouvia músicas novas e depressivas, e assim seguia minha tarde de recuperação da dor de barriga que havia inventado para os meus pais, que já estavam no trabalho àquela hora. Depois da sexta, faltar na segunda-feira era a melhor coisa que existia. Desliguei o computador, peguei um livro do Edgar Allan Poe, meu ídolo literário, e resolvi passear no parque, a fim de iniciar a leitura quando chegasse lá.

No caminho entre minha casa e o parque havia a mansão dos Morgues, uma casa igualmente assustadora e exatamente com o mesmo nome dos contos do Poe. Isso me fascinava porque, além de gostar muito das obras do Poe, havia no meu bairro uma mansão abandonada que se referia a um de seus melhores contos. Se eu contasse essa coincidência para algum estranho, certamente seria tido como maluco. Assim, seguia meu caminho com o livro do Poe em mãos quando finalmente passei em frente à Mansão dos Morgues. O dia estava incrivelmente ensolarado e a casa não parecia tão medonha como nas vezes passadas. O vento batia uma pequena portinhola que dava acesso ao quintal da casa e fazia esse movimento como uma espécie de convite. Eu havia passado ali centenas de vezes, mas nunca havia tido coragem de entrar. Em outras vezes, eu estivera acompanhado, e mesmo assim nunca ninguém havia ousado entrar lá.

Contudo, eu já estava com oito anos e não podia ter medo. O Poe riria de mim se estivesse me vendo. Pois, como poderia eu escrever contos de terror se nunca tivesse entrado numa casa mal assombrada? Encarei a casa exatamente como no conto da Queda da Casa de Usher. Lembrei-me do início fabuloso do conto, uma das minhas histórias favoritas e uma das mais famosas introduções de contos do autor, narrada sublimemente e, ao observar a casa com mais cuidado, pude notar o telhado velho coberto por musgos, o beiral decrépito com as extremidades de madeira apodrecida e inúmeros sinais de vandalismo nas janelas quebradas, com perfurações de pedras atiradas pelos meninos do bairro, boa parte deles meus amigos - confesso. Resolvi entrar.

Para ser sincero, eu acho toda essa história de casas mal assombradas uma verdadeira bobagem. É legal imaginar que coisas tenham acontecido, mas é claro que não havia assombração ou coisas do tipo. E não me venha falar que há porque eu não vou ficar com medo. Eu nunca estou com medo. E é normal, nas construções de madeira, o piso ranger quando são pisados. Isso não me assusta. Não mesmo.

Cheguei à porta da mansão e bati duas vezes, esperando que um mordomo, como aqueles dos filmes, viesse abrir a porta. Esperei mais alguns instantes e, como não houvesse resposta, girei a maçaneta e a empurrei levemente. O interior da casa estava horrível. Se minha mãe visse aquilo, diria que meu quarto não é tão desorganizado assim. Na verdade eu deveria ganhar uma medalha se fosse comparar o meu quarto com o ambiente daquela casa, pois eu sempre passava o aspirador de pó semanalmente embaixo da cama. O interior da mansão começava com a sala. Nisso ela era igual às casas que aparecem nos filmes. Havia uma sala ampla com um piano que parecia uma relíquia da Segunda Guerra. Não preciso falar que tudo estava com teias de aranha, né? Havia muitos esqueletos de aranha também. Só rezei para que o monstro daquela casa não fosse uma aranha gigante como a que aparece no filme do Senhor dos Anéis. Ora, estou falando de monstros, é claro que não há monstros. Até parece que estou com medo. Vamos em frente. Até que as coisas não são tão ruins. Há dois andares na casa, mas eu não vou subir a escada. Não que eu esteja com medo, mas é que tenho de voltar pra casa cedo. Monstros não existem, lógico. É tudo criação de nossa mente. Vi um vulto?!Meu Deus do Céu. Deve ter sido o vento. Claro que foi o vento. Tenho de voltar para casa.

Resolvi voltar, mas, acreditem, estava caindo o mundo fora da mansão. Uma tempestade como há tempos não via. Repentinamente, o tempo havia mudado. E agora era possível ouvir os trovões e clarões que rompiam as frestas de madeira da casa. Confesso que dessa vez senti um pouquinho de medo, e fiquei completamente imobilizado quando novamente percebi o vulto no quarto que prescindia a sala. Fiquei parado por uns minutos, mas novamente pensei na vergonha que estaria passando se alguém me visse. Eu não podia ser tão medroso. Assim, resolvi avançar alguns passos. Dessa vez pude notar que além da escuridão havia uma iluminação de vela proveniente do quarto. Aí, Meu Deus! Não quero morrer tão jovem. Desculpe, professora Silvana, juro que nunca mais vou inventar dor de barriga para faltar às suas aulas.

Contos de uma alma sufocadaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora