A realidade é um chute no peito

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Lá estava eu... com meu superesportivo. Um Mercedes C 300 Cabriolet, daqueles conversíveis brancos com bancos revestidos em couro vermelho escarlate. Coisa linda. Um carro que chama a atenção de todos e que chamou a atenção dos presentes na festa. A festa era na vila, no barraco de um camarada. O carro era o centro das atenções, e eu, como proprietário do automóvel, era o rei da noite. Tinham vários amigos envolta, o olhar das garotas da festa, bebidas, piscina e mais um monte de coisas que podem fazer um homem feliz. As risadas, o barulho e as lonas pretas do barraco, fechando a acústica do baile, impulsionavam a diversão.

Lá estava eu... comemorando alguma coisa. Mas o que importava mesmo era o que tudo aquilo significava. Os símbolos e significados de tudo que ocorria. Eu era um vencedor. Estava claro. Meus amigos sabiam disso: o carro, as garotas, tudo aquilo era maravilhoso. Às vezes, olhava para o céu, meio bêbado, e pensava: "Deus, como sou feliz"

Já na metade da festa o Marcão pulou para dentro da boleia do meu carro e ligou a ignição perguntando se ele podia ir ver a gata dele em Colombo com a minha máquina, eu quase não acreditei. Ele pediu as chaves e, então, depois de pensar um pouco sobre as consequências, joguei novamente as chaves nas mãos dele. Me aproximei um pouco o carro e procurei dar orientações sobre os cuidados que ele deveria ter com o possante e sobre o fato de que o carro não tinha seguro e todas essas coisas que deixam qualquer pessoa, mesmo bêbada, um tanto preocupada. 

O carro partiu e eu fiquei sentado no meio da rua, segurando uma garrafa de espumante e olhando para o céu e sorrindo feito bobo. Já estava tão louco que imaginava a constelação de Órion, o caçador, capturando as Plêiades. "Como pôde deixar isso acontecer, Zeus? Depois de sete anos e mais alguns bilhões de anos Órion finalmente conseguiu". Os filhos daquela junção estrelar amaldiçoada não poderiam ser boas coisas. Eu era Órion naquela festa, e as Plêiades estavam me esperando perto da piscina. Voltei para o barulho do barraco e coloquei meus pés na água, e via que ela me rodeava e beijava meus pés, num beijo que não era quente nem frio. Eu não sentia mais nada e já começava a me preocupar com a demora do Marcão para voltar com meu Mercedes. E se ele tivesse batido? 

Saí pra fora da festa com outras pessoas e esperamos na frente de uma praça, alguns de nós já deitados num banco, outros admirando a Lua e imaginando que ela era feita de Champanhe luminoso, numa loucura sem precedentes de vários vagabundos bêbados.

Finalmente o Marcão chegou com o Mercedes, acelerando e provocando um ronco de motor diferente de tudo que eu já tinha escutado e mais bonito do que uma sinfonia de Amadeus. E foi difícil pará-lo porque ele já estava cozido e conduzia o carro cantando pneus pela praça acordando todos os vizinhos para virem aquela apresentação maluca de como a felicidade poderia caber num copo de vodka com alucinógenos. E ele só parou em dado momento, quando o Marcão engatou a marcha à ré e passou por cima de um latão de lixo fazendo um tremendo barulho.

Meu Mercedes estava a salvo. E foi uma coisa estranhamente egoísta quando saí para abraçar meu carro e me certificar de que não havia nele nenhum risco ou amassado, detalhe a detalhe. Senti que o dinheiro estava comprando minha felicidade naquele momento, como muitas vezes ele comprava, e a única preocupação que me assombrava era onde eu iria achar espaço para estacioná-lo em casa, porque eu teria de dividir vaga na garagem além de me preocupar com outras inquietações desaforadas, que só foram respondidas quando o celular despertou, às 6 da manhã, com o toque chato que parece de Natal e do qual nunca lembro de trocar, de modo que o Natal acaba se tornando uma coisa ruim pra caramba explodindo minha cabeça todas as manhãs. Era um sonho, e não qualquer sonho: é um daqueles sonhos que você chega a fingir que não acordou e tenta forçá-lo a continuar, mas a história some e se desfaz. E o "soneca" lembra você de que a realidade é outra e de que ela está sempre lhe dando um chute no peito.

Contos de uma alma sufocadaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora