IV - Não perca tempo sonhando com bobagens impossíveis como a felicidade

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Nos dias seguintes, Esperança e Rousseau tiveram vários encontros públicos e privados, tentando se conhecer, aparar as arestas, e se entender. E, quanto mais Esperança conhecia seu pretendente, mais ela confirmava o quanto ele enxergava as mulheres como inferiores, incapazes, fracas e inúteis. Ele literalmente via Esperança como uma pobre e indefesa donzela que precisava ser defendida e protegida a todo custo e nada além disso. Ele tinha a exata visão exigida pelos nobres que decidiram dar a Coroa a ela: ele assumiria todo o Poder e governaria sozinho, enquanto ela seria apenas sua esposa e, no máximo, responsável por cozinhar sua comida e talvez lavar as cuecas reais... E claro, ela teria ainda a função de ter muitos filhos e garantir um Rei homem para Misoginíallys. E assim, a grande e principal função da futura Rainha Esperança seria ser um grande exemplo máximo de esposa, mãe e mulher para todas as outras mulheres do Reino seguirem e imitarem.

Mas, curiosamente, em meio a todo o menosprezo natural que ele demonstrava por ela e suas capacidade, Esperança conseguia sentir um carinho genuíno por ela. O Príncipe, com toda sua brutalidade e simplicidade, a via como uma bela e delicada flor que devia ser protegida a todo custo por um bruto como ele. E, ainda que ela não conseguisse concordar e aceitar isso, ela sentia que havia algo de muito fofo e romântico nisso. Era tentador, às vezes, pra Esperança, imaginar a ideia de abdicar de todas as responsabilidades, difíceis decisões, grandes problemas... poder se permitir viver como uma indefesa princesa de Contos de Fadas protegida pelo seu Príncipe Encantado... mas ela se lembrava do exemplo de sua amada Mãe, e de todo o esforço de sua amada Tia Anne, e entendia que não tinha o direito de se submeter e se rebaixar desse jeito a homem nenhum (por mais belo, apaixonado e bem intencionado que este homem fosse...). Esperança sentia que havia algo de muito injusto e cruel na submissão das mulheres perante seus maridos, e sentia que tinha a obrigação moral de renegar e combater isso. Por fim, a adolescente pensou que, se seu destino era ser exemplo pras demais mulheres seguirem, então que fosse um bom exemplo!

Certa tarde, ambos caminhavam ao lado de um belíssimo jardim florido, no qual um jardineiro trabalhava com todo cuidado e carinho para não pisar em nada, podando e embelezando ainda mais o que já era perfeito. Ela parou ali em frente a um cultivo de rosas das mais variadas cores, uns mais lindas que as outras, e ao centro e em destaque, uma perfeita Rosa Branca. Diante daquela obra prima poética da Natureza, ela ficou admirando enternecida. Entendendo todo o encanto pela beleza da Rosa Branca, eis que Rousseau, querendo agradá-la, saiu a atravessar tal jardim, pisando com sua pesada armadura de metal nas rosas e flores no seu caminho, pra estupefação do jardineiro, que acompanhou incrédulo e chocado todo seu cuidadoso trabalho ser destruído assim. Então Rousseau simplesmente arrancou a Rosa Branca, trouxe até a Princesa, se ajoelhou perante ela, e, com um sorriso transbordando ingenuidade e boas intenções, lhe ofereceu a Rosa morta. Esperança foi incapaz de repreendê-lo, não conseguindo nem mesmo apontar a inacreditável insensibilidade cometida pelo bruto apaixonado aos seus pés. Restou-lhe oferecer um sorriso forçado e um olhar compreensivo e carinhoso a alguém que tentava, ao seu modo, ser um cavalheiro e agradá-la. Para Esperança, as boas e nobres intenções podiam valer mais que os maus resultados obtidos, desde que o mal nunca tivesse sido o objetivo.

Mais tarde, em uma sala mais privada do Castelo, Esperança descansava e se refugiava no colo sempre disponível de seu amado amigo Emanuel, com a cabeça deitada neste enquanto recebia um terno carinho em seus fios encaracolados de cabelo. Emanuel era seu amigo, seu irmão, sua família, seu confidente, e com ele, ela podia desabafar tudo que carregava e pensava. Naquela noite, ela lhe falava de como seu pretendente podia ser inacreditavelmente grosseiro, arrogante, tosco, sem modos ou educação condigna de um Nobre Monarca, tudo isso ao mesmo tempo que esbanjava boas intenções, carinho e admiração inegáveis por ela, um respeito e uma vontade de protegê-la e agradá-la acima de tudo. Ela via, em meio a toda brutalidade e vigor que pulsavam naquele Guerreiro nato, sob aquele monte de músculos e testosterona, o olhar ternamente apaixonado e carinhoso para com ela. E concluiu assim, com a cabeça deitada no colo de seu confidente e conselheiro, e olhando-o nos olhos:

-"Oh, Emanuel! Como alguém pode ser, ao mesmo tempo, tudo que eu desprezo e temo, mas também algo que eu gosto e me emociona? Como uma pessoa pode ser tão contraditória? Rousseau não podia ser educado e fino? Mais que isso: Rousseau não poderia me enxergar sem preconceito por eu ser mulher? Ele não podia me respeitar, me tratar com igualdade e isonomia, sem todo aquele desprezo e inferiorização, como se o fato de ser mulher me fizesse de uma incapaz que precisa ser tutelada e acorrentada a uma cozinha?"

E então, ela começou a devolver os carinhos nos cabelos negros de Emanuel. Ela sempre o viu como um irmão, e não tinha percebido até agora a beleza humilde mas tocante que seu amigo trazia. Ele já tinha 18 anos, e era um homem formado, bonito e bem cuidado, não com a beleza chamativa e hipnotizante que emanava de Rousseau, mas com uma beleza própria mais singela, mas que também já chamava a atenção de várias moças que trabalhavam no Castelo. Então, olhando nos olhos dele e enrolando ternamente os fios de cabelo do companheiro, ela prosseguiu:

-"Oh Emanuel...meu tão amado e fiel amigo e irmão de todas as horas... porque Rousseau não é tão educado e carinhoso quanto ti? Porque ele não me enxerga sem as vendas do preconceito, do jeito que só você me enxerga?" - então a Princesa se levantou, e, ambos sentados, rostos tão próximos, olhares imersos um no do outro, ela concluiu - "Oh Emanuel... porque tu não nascestes nobre? porque não nascestes príncipe...?"

E a mão trêmula da jovem procurou e segurou as firmes mãos dele. Ele as segurou por um instante, quando o Mundo dos Sonhos se aproximou magicamente do Mundo da Realidade... mas ele logo a soltou, dizendo:

-"Minha Alteza: os Donos de Nosso País mal toleraram a ideia de te coroar, mesmo aceitando se casar com um príncipe para que este seja o Rei deles. Imagine se ousasses fazer de um mero plebeu o Rei! Michel mesmo sendo um mero regente provisório já abusa do Povo com impostos e opressão. Imagine o que faria sendo o Rei Legítimo e com todo o Poder pelo resto da Vida! Vossa Alteza, sua primeira e maior obrigação é com Vosso Povo e Vossa Dinastia, e deves..." - e então Emanuel não conseguiu falar. Precisou tirar o olhar de Esperança, e respirar fundo para assim concluir: - "... deves aceitar se casar imediatamente com seu pretendente. Por mais que me enoje todo preconceito que ele demonstre a ti pelo simples fato de serdes mulher, tenho que admitir que é nítido que ele te quer muito bem, e provavelmente será um marido devoto e que te fará muito feliz e satisfeita..." - e complementou sorrindo ironicamente - "..., é claro, se não fordes muito exigente com bons modos e noções mínimas de educação..."

A Rainha da Liberdade - O Primeiro Conto de Fadas Feminista da HistóriaWhere stories live. Discover now