Capítulo Único: Temporal sem sentido

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Um temporal.

É isso, Lass? É o que você sente? Você se vê no meio de uma tempestade turbulenta preenchida por chuva forte, vento, o céu escuro, e até granizo, não é? E você não tem nada para se proteger dela, não é?

Ora, Lass, você não deveria ser tão ingênuo assim. Já não foi o suficiente todo esse tempo para você aprender que nada que você pense é tão simples quanto um fenômeno natural? Você não vê que seus surtos, suas crises, seus pesadelos e suas vontades têm a mesma origem? Garoto... Você não vê? As linhas enroscadas em seus dedos e articulações? As mãos que puxam e controlam os fios e que te fazem ser "você"?

Mestiço, não se lembra do seu pai? De como ele cuidava e zelava por você e sua mãe? E daquele garoto de pele escura que um dia invadiu seu quarto e te tirou daquela vida, você lembra? Lembra do jeito como os olhos vermelhos daquele garoto refletiam ódio e vingança, das mãos rudes e ásperas que não tinham cuidado e que só uma mera sensação que remetesse à elas era o bastante para te fazer chorar por dias e dias?

E do circo, criança, você lembra? Você se lembra de ser um mero animal a ser exibido e mal tratado por lá? Dos sorrisos sádicos e de ser humilhado por simplesmente existir? Hein, o que tem a dizer? O peso das algemas e o frio dos metais ainda te fazem passar mal? Ainda te causam pesadelos?

Ah, Lass, e o calor do fogo? A queimação do incêndio te salvou daquele lugar? O que você sente sobre ele? E sobre o que veio depois? Você ainda se lembra? Da voz doce e mãos macias daquela mulher. Sim, dessa mesma. Se lembra de como você se sentiu acolhido e bem por ter cada pedacinho seu que havia quebrado nos anos anteriores sendo colhido e colado, e de como ela parecia ser tão boa pra você, quase uma mãe?

E quando ela deixou de ser essa "mãe" e simplesmente quebrou tudo aquilo que demorou tanto para reparar? Se lembra da sensação de não comandar seu próprio corpo, hm? Se lembra do desespero que sentia e que era prazer para ela? Se lembra dos anos de cárcere em seu próprio corpo, podendo fazer apenas se arrepender e se perguntar o por quê de ter tanto azar, de ter nascido para sofrer?

Se lembra, minha criança, da presença sombria que ela deixou em seu ser? Da sede de sangue que corre por suas veias? Se recorda de como mesmo agora você muitas vezes não tem controle sobre si mesmo?

E seus pensamentos? Como estão? Ainda tão singelos quanto uma tempestade? Ainda não controlam os ímpetos deixados por todos esses presentes? Garoto, você nunca será nada do que poderia ter sido, nunca poderá reparar os erros que o seu corpo fez, nunca sentirá paz enquanto viver.

Acha que viajar com essas.... pessoas mudará alguma coisa? Acha que você pode encontrar felicidade ou redenção andando com eles? Lass, minha querida doce criança, você sabe, você sente que seus esforços serão inúteis, você sente que suas emoções não te pertencem, você se lembra de ouvir isso, há tantos anos, então, por que ainda tenta?

Entenda, meu pequeno mestiço, você não é tão simples quanto uma tempestade, e, talvez infelizmente para você, também nunca conseguirá desemaranhar nem mesmo um único nó que as linhas que te comandam fizeram ao seu redor.

E agora, Lass, você se lembra? Se lembra de quem você não é?

Você se lembra, Criança?Where stories live. Discover now