espelho da alma

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Este é um conto inspirado no micro-conto Sozinha Com Sua Alma de Thomas Bailey, que diz:"Uma mulher está sentada sozinha em sua casa. Sabe que não há mais ninguém no mundo: todos os outros seres estão mortos. Batem à porta".


O Espelho da Alma

Maria Fagundes sempre foi o maior exemplo de pessoa solitária. Se isolou durante a vida inteira e, mesmo durante o apocalipse, não fez questão de dividir seu abrigo com ninguém. Apenas aceitou o destino de viver seus últimos anos mais sozinha do que nunca. Se ela tinha família? Ninguém nunca soube. Por que ela era assim? Outra pergunta sem resposta. 

Alguns imaginavam mil e uma histórias fantásticas e trágicas sobre sua vida, sempre numa falha tentativa de justificar seu modo de agir. Algumas mais românticas, como a que ela havia conhecido seu grande amor no colégio, mas teve que se mudar e nunca mais o viu. Outras mais aterrorizantes, como a que ela havia sido possuída após trocar sua sanidade por uma grande casa perto do lago. Contudo, nenhuma rendeu tanta discussão como a de que ela era uma feiticeira.

Por décadas as crianças do bairro ficavam apavoradas de se aproximarem da grande casa no fim da rua. Por diversas vezes a pobre senhora fora alvo de brincadeiras e burburinhos vindos de seus vizinhos bisbilhoteiros. Muitas costureiras juravam tê-la visto às 3:00 da manhã cultuando o próprio Satã ou caçando ratos pelo jardim. Cada nova mentira que era inventada abria um universo de interpretações e outras lendas que só surgiam para assolar a coitada. Maria não podia contar nos dedos quantas vezes já teve que receber policiais em sua residência para averiguarem se nada de ilícito estava acontecendo ali.Para qualquer coisa ruim que acontecia na rua, a Srta. Fagundes ganhava mais uma culpa erroneamente jogada em suas costas para carregar. Volte e meia se ouvia os gritos de uma família querendo tirar satisfação com a velha. 

Ela nunca se abalou, porém. Seguiu sua vida simples com sua "casa mal assombrada" e o dinheiro necessário (que não se sabe de onde veio). Tudo continuou da mesma maneira por muito tempo, até que o apocalipse veio e, se qualquer um tivesse sobrado, com certeza estranharia o quão preparada Maria estava para o acontecido. Ela acordou indiferente, passou a manhã indiferente, almoçou indiferente, regou suas plantas indiferente e, dezessete minutos antes da fatalidade, foi para seu abrigo e ficou lá por cerca de dois meses. Depois, saiu indiferente e seguiu sua vida. 

Talvez o fato de ela ser, agora, a única restante seja uma punição. Uma punição muito severa que nos obriga a imaginar o que de tão ruim ela fez para receber tal castigo. Ou, quem sabe, isto tenha sido um presente. Após anos e anos sendo atormentada, deveria desejar algum tempo de paz absoluta. Como ela descobrira sobre o acontecido e o porquê de não ter contado a ninguém continuará sendo um mistério que jamais será desvendado, e não vai ser por falta de rendimento de história. 

 A senhora ficou por muito tempo sem abrir a boca para falar. Um ano se passou e ela não chegou a dizer uma palavra sequer. Nem no segundo, nem no terceiro e nem no quarto. Até ali não havia dado um mínimo sinal de loucura ou insanidade. Dizem que a solidão enlouquece, mas para quem viveu assim por sessenta e nove anos e sobreviveu ao fim dos tempos, não faria diferença. Ela viveu despreocupada por um longo período, até que, num outro dia indiferente, Maria Fagundes contestou sua saúde mental pela primeira vez em décadas. Ouviu baterem à porta. Ora, algo mais havia sobrevivido? Como? Os resquícios da solidão finalmente danificaram sua mente? 

Ela se perguntou sobre muitas coisas antes de decidir ignorar o que tiver que tenha sido aquilo. Foi até a cozinha e bebeu um copo de água. Parou na exata posição em que estava quando ouviu as batidas novamente. Não se conteu. Se dirigiu à porta na velocidade máxima que seus músculos ainda aguentavam e, novamente, ficou encarando o grande pedaço de madeira que a separava da provável outra única coisa viva da Terra. Quanto tempo ficou ali? Não dava para saber. Ao sair da paralisia, olhou pelo olho mágico. Contudo, nada viu. Nada além da pequena rua vazia, a casa da frente quebrada, a grama crescendo por entre cada milímetro de espaço que lhe era dado. Num impulso, abriu a porta. Não havia o que temer, afinal. Estava sozinha, não é? Mais sozinha do que nunca. Ainda assim, pôde ver o que lá estava.

Viu seu próprio reflexo em sua frente. Poucos centímetros as separavam. Cada traço do rosto era igual. Cada pequena ruga em sua posição. Cada fio de cabelo alinhado com o gel que fazia suas mechas brilharem. Era ela. Ela mesma só que diferente. Estava mais cansada, mais triste, mais acabada. Sua alma a veio buscar. Depois de tantos anos, finalmente elas se encontraram novamente. A alma que pensara ter a abandonado na infância, um resquício de humanidade que finalmente apareceu para ela.

A puxou pela mão e seguiram juntas pelas ruas da pequena cidade. As lembranças de como o bairro costumava ser começaram a surgir e um tipo de saudade apertou seu coração. Foi ao secar uma lágrima que escorria sem permissão que sentiu o toque gelado de sua pele. Se sentiu triste como nunca havia sentido antes. Até os rumores a tocaram como uma boa nostalgia. As crianças barulhentas, as discussões com os vizinhos. Cada detalhe de sua antiga vida a fazia sentir viva, ao menos. Atualmente, como poderia distinguir o falso da realidade? Tudo se misturava numa melancólica visão que percebeu temer. Ela temia o exílio e o fim dos tempos como qualquer outro. Ainda sim, deixou que o orgulho a guiasse durante todo esse tempo. 

Agora, não havia mais salvação. Já era sua hora, e nada mais mudaria isso. Elas caminharam juntas até o cemitério da cidade e, com cuidado, Mary se deitou em sua cova, esperando apenas que a terra fosse jogada pelo espelho de sua própria alma.

o tempo é tediosoWhere stories live. Discover now