Segunda Parte, Capítulo VI

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No meio da rua estava parada uma carruagem, nobre e elegante, puxada por uma parelha de fogosos cavalos cinzentos; não levava ninguém dentro, e o cocheiro, que descera da boléia, estava ali, junto do carro; segurava os cavalos pelo freio, junto da boca. À volta juntara-se um círculo cerrado de pessoas, com dois polícias na primeira fila, um dos quais tinha uma lanterna na mão, e com ela, agachado, iluminava qualquer coisa na rua, mesmo junto da carruagem. Todos falavam, gritavam e lançavam ais; o cocheiro parecia perplexo e, de quando em quando, repetia: - Que pena, senhor, que pena!

Como pôde, Raskólhnikov abriu caminho por entre aquele aperto de gente e conseguiu finalmente ver qual era a causa de todo aquele rebuliço e curiosidade. No chão jazia, desmaiado, um homem que acabara de ser atropelado pelos cavalos, muito mal vestido, mas de maneira decente, todo ensopado em sangue, que lhe escorria da cara e dos cabelos; tinha a cara toda machucada, desfigurada, informe. Era evidente que o atropelamento fora grave.

- Bátiuchki - gritava o cocheiro -, como é que eu podia imaginar uma coisa destas! Se eu trouxesse os cavalos a galope, está bem; mas se eu ia a passo, por assim dizer, sem pressa! Todos vêem que eu não estou mentindo. Um bêbado não vê a luz, isso já se sabe... Eu o vi atravessar a rua aos tombos, quase caindo, e então gritei-lhe por uma, duas e até três vezes, e puxei as rédeas aos cavalos; mas ele veio mesmo direitinho meter-se debaixo das patas dos cavalos e caiu no chão. Parece mesmo que o fez de propósito, ou então estava completamente bêbado... Os cavalos são novos, espantadiços... Puxaram pelo freio. Ele deu um grito, os animais espantaram-se ainda mais e assim se deu a desgraça.

- Isso é verdade, foi assim mesmo! - exclamou entre a multidão alguma testemunha do sucedido.

- Ele gritou por três vezes, avisando, isso é verdade! - exclamou uma segunda voz.

- Por três vezes, com certeza, todos nós ouvimos - gritou uma terceira. Aliás, o

cocheiro não estava muito aflito nem assustado. Era evidente que a carruagem pertencia a algum potentado ricaço e conhecido, que devia estar à espera dele em alguma casa conhecida; os guardas, não havia dúvida que se preocupavam com a maneira de remediar esta última circunstância. A única coisa que faltava era transportar a vítima ao hospital. Ninguém sabia o seu nome.

Entretanto Raskólhnikov abriu caminho e agachou-se para olhar mais de perto. De repente, a lanterna iluminou em cheio o rosto do infeliz e então ele o reconheceu.

- Eu o conheço, conheço-o! - exclamou, aproximando-se da primeira fila. - É um funcionário aposentado: o conselheiro titular Marmieládov. Vive aqui perto, no edifício Kosel... Um médico, já! Eu pago! Aqui têm!

Tirou dinheiro do bolso e mostrou-o ao polícia. Estava comovido de espanto.

Os polícias ficaram muito satisfeitos quando souberam o nome do atropelado. Raskólhnikov disselhes também o seu, deu-lhes o endereço e tratou com o maior interesse da imediata remoção de Marmieládov para o seu domicílio.

- É ali, três prédios mais adiante - dizia -, a casa de Kosel, um alemão riquíssimo... De fato, devia estar embriagado, devia ir para casa. Eu o conheço... era um beberrão... Tem família, filha, uma filha. Daqui até que o levem para o hospital... ao passo que ali, em sua casa, por certo que deve haver um médico. Eu pago, eu pago! Seja como for, aquela é a sua casa, terá logo quem trate dele, ao passo que até chegar ao hospital pode morrer...

Até se apressou a meter uma moeda na mão dum dos polícias, embora o caso fosse claro e lícito e, em último caso, ali perto poderiam prestar-lhe auxílio. Ergueram o ferido e transportaram-no. Houve quem se prestasse a isso. A casa de Kosel ficava apenas a trinta passos dali. Raskólhnikov ia atrás, amparando-lhe a cabeça com muito cuidado e indicando o caminho. - Por aqui, por aqui! Quando subirem a escada é preciso porem-lhe a cabeça para a frente. Voltem-no... Assim! Eu pagarei tudo e ainda ficarei agradecido - murmurava.

Crime e Castigo (1866)Where stories live. Discover now