Amianto

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Sai de casa batendo a porta. A cabeça cheia pedia um tempo e não seria em casa, com tantas brigas por motivos idiotas, que eu conseguiria a paz que eu necessitava. Já não nos entendíamos mais, não havia mais conversas divertidas, abraços apertados, beijos apaixonados... não sei nem se ainda havia amor. Ou melhor, não havia amor. Talvez não havia o GOSTAR. Até pior, o respeito.


Andei a esmo pela cidade e acabei parando no local mais óbvio: meu trabalho. Poucas pessoas acreditavam quando eu dizia que o lugar que eu mais me sentia a vontade era no trabalho.
Atravessei a rua e entrei no prédio. Seu Zé, o porteiro, já acostumado com as minhas idas noturnas ao escritório, apenas me acenou com um sorriso caloroso.

Subi ao vigésimo primeiro andar e fiquei na minha sala até depois da uma da manhã, quando minhas pálpebras começaram a pesar e as letras no computador começaram a se embaralhar.Não queria voltar para casa, com certeza as brigas iriam recomeçar e eu não estava com paciência. Fui para a pequena cozinha que tinha nos fundos do escritório a fim de fazer um café para espantar o sono. Esperava o café ficar pronto quando percebi uma luz acesa no final do corredor pela porta entreaberta. Desconfiado de que algum colega houvesse deixado as luzes acesas, me direcionei até a sala e abri a porta de um súbito, pronto para apagar a luz quando levei um susto.


Sentada na janela, de costas para mim e com as pernas penduradas para fora, estava aquela figura de cabelos vermelhos que eu sabia que quando se virasse, iria me encarar com os olhos verdes vivos. Ela deveria ter cinco anos a menos que eu, sabia que ela estagiava há quase um ano na sala ao lado, mas nunca havia falado com ela ou sabia seu nome.


- Oi - chamei meio sem jeito e com medo de assustá-la e ela cair. - Tá tudo bem?

Ela se virou e por um momento aqueles olhos verdes, intensificados pelo vermelho dos olhos molhados, me tiraram a respiração. O rosto molhado pelas lágrimas e o semblante assutado me deixaram preocupado e, por algum motivo, ao ver aquele rosto, senti que estávamos no mesmo barco.


- Hey, me diz o que aconteceu. O quê que a vida aprontou dessa vez?


Ao ouvir isso, seu corpo tremeu em um soluço e várias lágrimas lhe caíram dos olhos. Fiquei com medo que ela caísse e me aproximei devagar.


- Moça, tu é muito nova pra isso. Sai dessa sacada, por favor. Eu sei que as coisas podem estar difíceis pra ti, mas tudo bem. Nós nem sempre estamos nos nossos melhores dias.


- Moço - a voz dela conseguiu sair irônica apesar de fraca -, ninguém é de ferro...


- Eu sei - dei mais um passo à frente. - Mas presta atenção: imagina a vida como uma mãe - ela me olhou sem entender. Sorri por dentro sabendo que tinha a atenção dela. - É, uma mãe. Quando somos pequenos, nossas mães nos obrigam a comer vegetais e essas coisas que não gostamos na hora das refeições. Por quê? Por que elas sabem que aquilo nos fará bem, nos fortalecerá. A mesma coisa a vida. Ela nos faz provar de experiências ruins para que no futuro estejamos fortes e preparados para os desafios.


Ela me olhou pensativa. Girou no parapeito da janela colocando as pernas para dentro da sala e fazendo com que uma onda e alívio e medo percorresse meu corpo.


- E a morte? - perguntou ela ainda irônica, mas ao mesmo tempo interessada.

-A morte? A morte... ela pode ser comparada com um pai, desses bêbados. Esse pai bate na mãe e acaba roubando dos filhos do prazer de brincar, os priva da felicidade, os impedindo de um amanhã melhor. Com a morte somos privados de sermos felizes depois das dificuldades.


Nos olhamos em silêncio. Sabia que não havia lhe convencido cem por cento.
Dei um passo à frente ficando na distância de um braço.


- Vem, desce daí. Acabei de preparar um café. Vamos conversar. Quero te ouvir e tentar te provar que a minha teoria é verdadeira.


- É, eu gostei da tua teoria - disse ela com um sorriso triste.


Abri um sorriso ao vê-la sorrindo e limpando as lágrimas, certo que havia feito com que ela mudasse de ideia.


- Obrigada por ter me contado sobre ela. Mas, sabe, somos programados pra cair.

Então, numa velocidade surreal, ela abriu os braços e se jogou.


Gritei ao mesmo tempo que tentava lhe segurar, mas foi em vão.




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⏰ Last updated: May 20, 2019 ⏰

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AMIANTO - ninguém é de ferroWhere stories live. Discover now