Objectofilia (capítulo único)

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Não sei se existe amor a primeira vista, mas sei que existe amor ao primeiro toque.

Eu lembro quando ele me tocou pela primeira vez, a explosão que eu senti por dentro, o prazer, a sensação de estar sendo tocada por alguém que me amaria pra sempre.

Já fui tocada por várias outras pessoas, homens, mulheres, crianças, até mesmo tive algumas experiências com animais. Mas nenhuma delas me fez sentir o que ele me fez sentir.

Ainda lembro quando ele se mudou para a minha casa, ele sentiu o mesmo que eu e quis ficar mais perto de mim.

Eu sei o que você vai perguntar: como um humano poderia sentir o mesmo que uma porta? Eles não passam de objetos sem alma que ficam andando pra lá e pra cá apenas para nos dar uma função nessa vida.

Eu não sei como aconteceu, mas aconteceu.

Ele era jovem, tinha 20 e poucos anos, já eu era uma peça de carvalho chegando aos 50, mas ainda mantinha os traços da juventude (nenhum jovem resiste a uma coroa bem conservada).

O apartamento onde eu morava é bem antigo, lembro que fui uma das primeiras moradoras daqui, no apartamento 2 do primeiro andar, depois de alguns anos, me mudei para o apartamento 5 do quarto andar, onde eu o conheci, o amor da minha vida.

Suas mãos eram firmes e quentes, ásperas como as de um marceneiro, quando eles as colocava na minha maçaneta, eu sempre fazia força para que ele a girasse com mais firmeza.

Quando ele colocava a chave em mim, me sentia completamente dominada, e eu adorava isso.

Quanto mais ele metia a chave em mim, mais eu percebia que eu sentia muito mais prazer quando eu forçava a minha tranca.

Então comecei a forçar, e assim, ele me dominava mais.

Tinha vezes que eu demorava muito tempo para deixar ele entrar, nessas horas, ele me xingava, e eu também adorava isso.

Eu o controlava, enquanto ele achava que estava no controle.

Eu era dele e ele era meu.

Éramos perfeitos juntos.

Até o dia em que ele me traiu.

Eu estava o esperando voltar do trabalho como eu sempre faço. Ele estava demorando muito e eu estava preocupada.

As horas se passaram e eu estava ficando desesperada.

Até que eu o vi, com ela.

Eles entraram no corredor de mãos dadas, completamente bêbados e rindo juntos. Assim que eles pararam na minha frente, começaram a encostar as bocas um no outro.

Uma coisa comum entre os objetos, mas não sabia que ele era capaz disso.

Me senti traída, trocada, fiquei imóvel enquanto via ele me trocando por uma coisa que era igual a ele.

Achei que ele era diferente, que gostasse de seres reais em vez desses objetos ambulantes que a cada dia parecem ter menos alma.

Ele tirou a chave do bolso e a colocou em mim.

Não senti prazer nenhum, mas mesmo assim forcei a tranca.

Eu era dele, não ela, queria que ela visse o quanto ele me amava mais.

Eu forçava cada vez mais, não ia abrir a tranca até ela ver que já perdeu essa competição.

"Ele me ama mais, olha o que ele faz comigo.", pensava comigo mesma.

Até que ele fez o impensável.

Eu não cedia para ele, acho que o forcei demais.

Ele me empurrou com tanta força que quebrou a minha tranca.

A dor que eu senti foi imensa, parecia que algo havia sido tirado de mim, tanto fisicamente quanto emocionalmente.

Depois disso, ele simplesmente pega a mão da outra e a leva para dentro da nossa casa.

Ele me fecha, mas sabendo que eu estava quebrada, pega uma cadeira e a força em mim para eu continuar fechada.

É assim que as coisas são? Nos usam para seu próprio prazer e depois nos trocam como se fosse nada?

No outro dia, ele a mandou embora e consertou a minha tranca. Ele nem chegou a pedir desculpas.

Ele continuou me usando normalmente, mas eu não sentia mais prazer, não forçava mais a tranca para ele.

Acho que ele percebeu que eu não o amava mais, já que depois de um tempo, ele foi embora, sem se despedir de mim.

Eu quero acreditar que era doloroso demais se despedir de mim, então não o fez.

Anos se passaram e tive vários casos depois, com todos os tipos de pessoas, mas nunca o esqueci.

Às vezes, me pego imaginando onde ele poderia estar, se ele ainda pensa em mim, em nós e como tudo poderia ter sido diferente.

Eu espero que sim, essa é a única coisa que me conforta nesse momento.

Estou sozinha agora, ninguém mora mais aqui, minha tranca foi tirada, o lindo número 5 que eu tinha em mim também, agora estou sempre aberta e empoeirada.

Vejo apenas ratos, aranhas e baratas todos os dias, eles são pequenos objetos, mas não são inteligentes o suficiente para saber o que é o amor.

Escuto barulhos, o que são?

Barulhos altos, como se algo estivesse desabando. O chão treme e as paredes também.

Estou vendo o teto rachando, não sei o que é, mas sei que não é bom.

Tudo está se destruindo a minha volta, as outras portas estão em desespero, caindo e se quebrando.

Uma bola gigante de ferro está vendo na minha direção.

É, acho que é o fim.

Finalmente, o fim de todo esse sofrimento, dessa tristeza e angústia.

O que vai acontecer depois? Eu não sei, mas deve ser melhor do que tudo o que eu vivi até agora.

Antes de partir, um conselho: o amor só serve pra você perder a sua tranca, se isso é algo bom ou não, só depende de você.

E é isso, adeus, de uma porta não mais amada para outra.

Fim




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