O forasteiro

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1 – O forasteiro

A procissão de Nossa Senhora de Sant'Anna chegara por volta das nove horas da manhã. A imagem da santa já estava acomodada no altar da igreja, enquanto a rua principal do distrito de Capela do Rio do Peixe continuava movimentada de homens, mulheres, crianças e cachorros.
Eram onze horas. Ao longo da noite, aquela gente enfrentara frio e cansaço para percorrer os trinta e sete quilômetros de estrada que ligam a Igreja da Matriz, no centro histórico da cidade de Pirenópolis, em Goiás, à Igreja de Sant'Anna, na localidade de Capela.
Com sentimento de fé renovada e graças a serem alcançadas, fiéis saciavam a sede com água, bebidas alcoólicas e refrigerantes naquele fim de manhã nem tão frio, já bastante ensolarado, conversando sentados em bancos de praças, meios-fios, à sombra de árvores ou em varandas de casas de amigos ou conhecidos.
Um grupo de homens vestidos apenas de bermuda, alguns sem camisa, muitos deles romeiros que não se entregavam ao cansaço da caminhada noturna, jogavam sinuca e bebiam no Bar Primavera, tradicional ponto de encontro do distrito.
A chegada da imagem à Capela marcava o início da tradicional Festa de Nossa Senhora de Sant'Anna, celebração que acontece anualmente desde o século XVIII, quando a região passou a ser explorada por estranhos desbravadores e aventureiros, que chegavam em busca de ouro.
Durante os festejos de Sant'Anna, o minúsculo distrito pirenopolino recebe milhares de visitantes. Na falta de acomodação para todos, o poder público disponibiliza, no período da festa, entre os dias 16 e 27 de julho, bons espaços para acampamento com alguma infraestrutura.
Desse modo, os visitantes são recebidos em boas condições para conhecer ou rever Capela do Rio do Peixe, louvar Nossa Senhora de Sant'Anna, rezar, cantar, fazer novenas, assistir a missas e a tantas outras manifestações e demonstrações de fé e esperança.
Os modos de organizar e promover a Festa de Nossa Senhora da Capela mudaram ao longo do tempo, perdendo o caráter puramente religioso. A modernidade obrigou os velhos sanfoneiros a dividirem espaço com conjuntos de música eletrônica, comandados por DJs da região e de fora.
Os ranchos, que são espaços comerciais que vendem comida e bebida, oferecem música ao vivo, tornando-se pontos de encontro de lazer para depois dos compromissos religiosos.
As mocinhas que usavam véu na cabeça e carregavam terço nas mãos, trajando sóbrios vestidos limitados à altura da canela, juntaram-se às sensuais amazonas que chegam a cavalo, enfiadas em apertadas calças de brim, camisas estampadas e vistosas botas de couro de várias tonalidades.
Os rapazes que usavam ternos de cores fúnebres também misturaram-se aos jovens caubóis ornamentados de chapéu de Panamá. Estes comparecem ao local guiando seus carrões milionários de tração nas quatro rodas, cabine dupla e carroceria pronta para carregar bois ou o que mais couber.
O terceiro grupo de pessoas que se envolve diretamente na organização da festa são nativos ou visitantes que dão caráter histórico e religioso ao evento: o imperador ou festeiro e seu séquito, composto de mordomos e alferes, entre outros, que encarnam os personagens das encenações de passagens bíblicas que ocorrem durante a festa.
O imperador abre as portas de sua casa aos festeiros e oferece comida e bebida à vontade, durante todo o tempo. Para saciar a fome e a sede geral, cozinheiras e doceiras preparam saborosos pratos típicos, a exemplo das galinhadas com pequi e das verônicas, que são os tradicionais doces de açúcar, tão saborosos e indispensáveis às comemorações.

***

No clima de início de festa e de celebração, fé e diversão, luxuosa Ferrari conversível branca apontou na entrada do povoado de Capela do Rio do Peixe e reduziu a velocidade, deslizando em seguida pelo asfalto esburacado até estacionar na frente do Bar do Cabriolé.
Com placa do Rio de Janeiro, a máquina já estava desligada quando de dentro dela saltou vistoso homem, que ficou de pé na calçada, olhou ao redor e, de costas, acionou o controle remoto que levantava a capota, travava as portas e ligava o alarme.
Um tipo exótico, comparado aos homens comuns da região. Media mais de metro e oitenta de altura, exibia corpo de manequim, desses que desfilam em passarelas e que gente simples feito o povo da Capela do Rio do Peixe só via em novelas, filmes e comerciais de televisão. Aparentava ter entre trinta e cinco e quarenta anos.
E que cabelos louros, compridos até os ombros e repartidos de lado eram aqueles? Mais pareciam fios de ouro, que envolviam o rosto perfeito, de nariz esculpido pela mão de Deus, e a boca, nem tão carnuda, de inigualável sensualidade.
E que olhos grandes eram os dele? Semelhantes a duas pedras de grandidierite, milenar mineral precioso que oscila entre as cores verde e azul e é encontrado no Sri Lanka, país próximo da Índia. Até para quem se negasse a ver, o viajante que acabara de chegar tinha pele lisa e delicada, sem pelo à vista, a não ser na cabeça coberta de fios de ouro.
Verdadeira ode à beleza, trajava camisa de malha vermelha no número exato, de modo a lhe contornar o tórax perfeito, provavelmente forjado em academia de ginástica de moderníssima e confortável aparelhagem.
Vestia ainda calça xadrez em vermelho e branco, que lhe torneava as pernas nem tão finas nem tão grossas, na medida exata, e calçava sapato-tênis azul.
Com perfeitos e bem distribuídos atributos físicos, o forasteiro compunha beleza masculina quase feminina, capaz de despertar velada perturbação em homens desprevenidos e explícita e incontrolável histeria em moças assanhadas, nas menos discretas e até em respeitáveis senhoras.
O deus do esplendor tinha aparência de quem nunca passou por dificuldade na vida e fez pouco ou nenhum esforço para chegar aonde chegou. Carregava no ombro uma pequena mochila, que segurava com uma das mãos, enquanto caminhava para a entrada do Bar do Cabriolé.
Antes de entrar no estabelecimento comercial, ele parou e, num gesto que mais lembrou um bailarino, girou sobre o calcanhar para acompanhar o movimento da capota, que subiu e encobriu os assentos de couro marrom, para encaixar perfeitamente no para-brisa da célebre máquina italiana.
Da maneira como agiu, dava a impressão de que toda a tecnologia de ponta da marca Ferrari não merecia nenhuma credibilidade, ainda que tivesse passado por exaustivos testes, aprovada com louvor e consagrada em milionárias competições automobilísticas.
Após conferir com os olhos que o veículo estava em segurança, o forasteiro girou novamente cento e oitenta graus, mirou a entrada do bar e, finalmente, entrou. Em silêncio, ultrapassou a porta, deu alguns passos e parou próximo ao balcão.
O sol já caprichava no azul do céu e produzia muita luminosidade no local. Sobrava, portanto, claridade suficiente para dispensar a iluminação elétrica de dentro do comércio. Mas a engenharia do antigo prédio não favorecia a entrada de luz natural, forçando o uso de lâmpadas permanentemente.
O ambiente era ainda dos mais insalubres, pois havia poeira por todo lado. Mais fácil foi deduzir que, naquelas condições, pessoa alérgica fatalmente teria problemas de respiração se permanecesse ali por muito tempo.
O desleixo também era visível no teto do prédio, onde havia uma infinidade de teias de aranhas, e nas prateleiras, de empoeiradas garrafas de cachaça, espaçadas cerca de meio metro umas das outras, para compor pobre e nada atraente decoração.
No chão de cimento batido acumulava-se lixo de dias sem varrição. Próximo à parede avistavam-se engradados de bebidas e mercadorias recém-chegadas, apenas conferidas, mas nem por isso devidamente armazenadas. Tudo a compor ambiente favorável à presença de indesejáveis moscas, mosquitos e muriçocas.

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⏰ Last updated: May 27, 2019 ⏰

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