a viagem

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Encaro as garotas ansiosas, curiosas com o que aconteceu após aquele baile

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Encaro as garotas ansiosas, curiosas com o que aconteceu após aquele baile. Ora, o que aconteceu? pergunto a elas retoricamente. Pisco um pouco, desviando meus olhos enrugados, encarando o céu azul. Alguns pássaros sobrevoam o imenso azulado até que me volto pra elas e continuo:

Vivemos um incrível e efêmero amor de verão, mas não é sobre isso que quero falar.

Quero contar sobre o fim.

As melhores histórias começam com brigas em bar e gangues pilotando motos. No entanto, não foi assim que minha história começou. Foi como ela terminou.

— Nós não estamos juntos pra durar— ele disse um dia quando estávamos em sua casa, no porão pra ser exata, onde ele dormia.

— Parece preocupado demais com o futuro, para alguém que ia se jogar na vida. — Arqueei minha sobrancelha.

Ele não sabia se ria ou replicava; todos os dias daquele verão pós formatura foram assim.

— Você é respondona demais para uma garota. Lembre-se que, infelizmente, o feminismo ainda não venceu, querida.

Eu fiquei brava. Não gostava de ouvir coisas assim, não era certo. Mas ele sabia, ele sempre quis me irritar.

Ameacei jogar o Abbey Road, autografado, na cabeça dele.

Chuck se movimentou rápido e agarrou o disco. Seu olhar tinha cautela.

— Reencarnei no espaço-tempo errado — respondi, o alfinetando.

— Essa é a resposta mais provável de todas as questões que envolvem você. — Ele entrelaçou nossos dedos e percorreu, junto a mim, a velha madeira do porão em que ele morava.

A mão dele era sempre quente.

— Afinal, como conseguiu um disco autografado dos Beatles? — questionei ao vê-lo acariciar as letras autênticas.

Ele enganchou a agulha da vitrola e a melodia soou por todo aquele, empoeirado e rústico, lugar.

— Contatos, querida. O mundo é feito disso.

— Eu deveria me preocupar? — Apoiei minha mão naqueles ombros largos.

— Absolutamente. — Ele girou meu corpo com calma, ao mesmo tempo em que corria com a mão em minhas costas.

E com isso, Charles Reed foi meu.

Fui empurrada contra a mesa de sinuca e acariciada em partes nunca antes tocadas. A mão dele arrepiou cada centímetro do meu corpo. A promiscuidade exalava, em sua mais pura e indecente essência.

Ele me fez ficar de frente, rosto a rosto. Alinhou as mechas emboladas do meu cabelo e deslizou a mão pelo meu pescoço, no vale entre os seios e chegou na lateral do vestido.

— É o mesmo vestido do baile. — Ele observou enquanto descia o zíper lentamente. — E de alguma forma, você está ainda mais fascinante hoje.

Provavelmente, havia umas cem razões para que eu caísse fora.

Mas, algo me impediu. Talvez fossem aqueles cabelos rebeldes. Os ombros largos. As tatuagens recentes. O sorriso doce, mesmo depois de viver tantas merdas.

Ou, apenas o conjunto todo.

Só um motivo pra ficar foi o suficiente.

Porque esse motivo era ele. Apenas ele.

Nós nos conectamos com os Beatles, naquele baile. Transamos ao som deles. E anos mais tarde, nos casamos também.

No entanto, isso demorou um pouco.

A começar pelo fim daquele verão.

Eu tinha acabado de fugir de casa porque Chuck andava distante enquanto o fim do verão se aproximava e eu queria saber o porquê disso.

Cheguei a tempo de vê-lo na frente da própria casa.

— O que está fazendo? — perguntei completamente ofegante.

Ele não atendeu o telefone e pular pela janela foi a única coisa em que pensei.

— Cumprindo minha palavra. Estou indo. — Ele amarrou uma mochila grande na traseira da moto.

— Não precisa ir agora.

— Sim, preciso. Estou sendo despejado. Quase chutado.

Eu sei que aquele foi o primeiro momento na minha vida inteira que eu perdi o ar. Ele estava realmente indo embora. Como prometeu a si mesmo na formatura. E ficar sem ele quase me matou.

Não. Não vai — disse, suplicando.

Ele riu amargamente, ainda de costas para mim. Eu o ouvi fungar e movimentar as mãos no próprio rosto. Ele estava chorando. Aquela foi a primeira vez, de muitas, que Charles Reed chorou para mim. Por mim. E comigo.

Os olhos estavam doloridos quando ele finalmente virou-se para mim e abraçou meu corpo como se abraçasse aquele momento.

Assim eu soube: um segundo pode durar anos se isso significa uma despedida.

Eu o agarrei, me enroscando na jaqueta de couro, tentando frear aquilo. Achando que se eu fechasse os olhos, estaria paralisando o momento.

Mas, não estava. O tempo corre.

— O tiro saiu pela culatra. Não é, querida? — ele sussurrou, fazendo-me lembrar de quando o mandei ir embora.

Duas semanas antes de encontrá-lo ali, pronto para fugir, tínhamos brigado por causa de um cara, em um bar. Estávamos bebendo quando Chuck decidiu ir ao banheiro e eu fiquei sozinha no bar. O homem se aproximou, cochichando no meu ouvido; querendo saber o que uma garota fazia naquele local.

— Talvez eu só queira beber sem ninguém enchendo minha paciência.

Aquele cara realmente não gostou da minha resposta. E veio pra cima de mim. Eu empurrei o peitoral dele, sem sucesso. E fui jogada contra o balcão.

Foi quando Chuck saiu do banheiro, ainda arrumando sua calça.

Os olhos quase saltaram do próprio rosto.

Eles se quebraram feio.

Achei mesmo que Charles Reed não aguentaria aquela surra. Mas, ele finalmente quebrou o primeiro braço, de uma longa lista, de homens bêbados.

Eu estava aterrorizada, se querem saber.

Em qualquer outro momento, com outros caras; eu estaria rindo e esperando o veredito.

Mas, não com ele.

Não com o homem que tinha o meu amor.

Eu disse que ele tinha que ter ido embora há muito tempo. Deveria ter ido embora na noite do baile. E eu deveria odiá-lo. Assim seria mais fácil vê-lo levar uns socos. Até eu mesma daria.

Eu repeti tantas vezes pra ele ir.

E foi.

Charles Reed me deixou para trás, arrastando meu coração pelas estradas em que percorreu por dois anos até que cumprisse a promessa que me fez antes de acelerar aquela moto.

— Viva. Porque você merece. Eu quero histórias quando eu estiver de volta. Porque eu voltarei, querida.

ROTA 66Where stories live. Discover now