01 - A Raposa sentiu o carro reduzir

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A raposa sentiu o carro reduzir a velocidade antes do menino, pois sentia tudo primeiro. Começando nas almofadinhas das patas, subindo pela coluna até os sensíveis pelos dos pulsos. As vibrações do carro em movimento indicaram que a estrada naquele trecho era mais irregular. A raposa se ergueu no colo do seu menino e farejou os filetes de cheiro que se infiltravam pela fresta da janela:estavam entrando em uma área de bosques. Os odores intensos de pinheiro —madeira, tronco, pinhas e agulhas — rasgavam o ar como lâminas, mas, uma camada abaixo, a raposa identificou os aromas mais suaves de trevos, alho selvagem e samambaia, além de inúmeros outros que nunca havia sentido, masque carregavam um forte tom de verde.

Então o menino também sentiu algo. Puxou o bichinho de volta para o colo e apertou com mais força a luva de beisebol .

A ansiedade do menino surpreendeu a raposa. Nas poucas vezes que eles viajaram de carro, o menino tinha ficado calmo, às vezes até empolgado. A raposa esfregou o focinho na tela da luva, embora odiasse o cheiro de couro. Seu menino sempre ria disso. Ele apertava a cabeça do bichinho com a luva, brincando de esmagá-lo, e assim se distraía.

Naquele dia, no entanto, o menino ergueu a raposa e afundou o rosto nos pelos brancos de seu pescoço.

Só então a raposa percebeu que seu menino estava chorando. Virou-se parao bservar o rosto dele, pois queria ter certeza. Sim, chorando — mas sem emitir som algum, coisa que a raposa não sabia que ele fazia. O menino não derramava lágrimas havia muito tempo, mas a raposa lembrava: antes de chorar, ele sempre gritava, como se exigisse que prestassem atenção à curiosa água salgada que brotava dos olhos.

 A raposa lambeu as lágrimas do menino e ficou ainda mais confusa: não havia cheiro de sangue. Contorcendo-se, saiu dos braços dele para examinar seu humano com mais atenção. Teve medo de não ter notado algum ferimento, embora seu olfato nunca se enganasse. Não, não tinha sangue; nem mesmo um hematoma. 

O carro fez uma curva para a direita, e a mala ao lado deles se deslocou. Pelo cheiro, a raposa sabia que ali estavam as roupas e os objetos de maior apego do menino: a foto que ficava sobre a cômoda do seu quarto e os itens que ele escondia na última gaveta. Com a pata, a raposa mexeu em uma ponta da mala,tentando abri-la o suficiente para que o nariz fraco do menino sentisse os cheiros de seus itens preferidos e ele se sentisse reconfortado. Justamente nessa hora o carro desacelerou de novo, até um rastejar rosnado. O menino se debruçou para a frente, escondendo o rosto nas mãos.

A raposa sentiu os batimentos cardíacos acelerarem de repente e os pelos fartos da cauda se eriçarem. O cheiro de metal queimado da roupa nova que o pai do seu menino usava fazia a garganta arder. A raposa pulou para a janela e a arranhou. Às vezes, quando estavam em casa, seu menino erguia o vidro quando o bichinho fazia aquilo. Sempre o ajudava a se sentir melhor.

Dessa vez, porém, o menino apenas o puxou de volta para o colo e disse algo em tom de súplica ao pai. A raposa, que já tinha aprendido o significado de muitas palavras humanas, ouviu o menino usar uma das que conhecia: NÃO.

Geralmente, a palavra "não" vinha ligada a um dos únicos dois nomes que a raposa conhecia: o seu próprio e o do seu menino. Prestou bastante atenção, mas naquele momento foi só o "NÃO", suplicado ao pai várias e várias vezes.

O carro pendeu para a direita após parar com um tremor, erguendo uma nuvem de poeira ao lado da janela. Mais uma vez, o pai esticou a mão por cimado banco e, depois de dizer alguma coisa ao filho com uma voz dócil que não combinava com seu forte aroma de mentira, pegou a raposa pelo pescoço macio.

Seu menino não o impediu, então a raposa também não fez nada. Deixou-se levar, inerte e vulnerável, pela mão do homem, embora, por medo, desse umas mordidinhas. Não era agora que desagradaria seus humanos. O pai abriu a portado carro e caminhou pelo chão de cascalho e grama batida até a entrada do bosque. O menino também saiu do carro e foi atrás.

 Logo que o pai do menino a colocou no chão, a raposa correu para longe dele. Então encarou seus dois humanos. Já tinham quase a mesma altura, reparou,com surpresa. O menino havia crescido bastante nos últimos tempos.

O pai apontou para o bosque. O menino olhou para ele por um bom tempo, as lágrimas voltando. Por fim, secou o rosto com a gola da camiseta e concordou com a cabeça. O menino pegou do bolso um velho soldadinho de plástico, o brinquedo preferido da raposa.

A raposa entrou em alerta, pronta para a brincadeira: o menino jogava o brinquedo e a raposa o encontrava — um feito que sempre impressionava o menino. Com o soldadinho entre os dentes, a raposa aguardava ser encontrada, quando o menino recuperava o brinquedo e o jogava de novo.

Como sempre, o menino ergueu o soldadinho bem alto e o jogou no bosque. O alívio — tinham ido até ali só para brincar! — deixou a raposa descuidada. Entrou correndo no bosque sem nem olhar para seus humanos. Se tivesse olhado, teria visto o menino se afastar do pai, as mãos no rosto, e teria voltado. Teria oferecido a seu menino aquilo de que ele precisasse — proteção, distração, afeto.

Mas não: foi atrás do brinquedo. Daquela vez foi um pouquinho mais difícil que o habitual, pois havia muitos outros odores no bosque, odores mais frescos. Mas só um pouquinho, pois o cheiro do seu menino estava no brinquedo. E esse cheiro a raposa encontraria em qualquer lugar. 

O soldadinho estava caído com o rosto para baixo na raiz nodosa de uma árvore, como se tivesse se jogado ali em desespero. O rifle que o soldado apertava contra o rosto estava enterrado até o cabo no meio de folhas secas. A raposa ajeitou o brinquedo com o focinho, pegou-o na boca e se ergueu nas patas traseiras, pronta para que seu menino a encontrasse.

Na quietude do bosque, os únicos movimentos eram da luz que atravessava o toldo formado pela copa das árvores — os raios de sol cintilando como vidro verde. A raposa se esticou ainda mais. Nem sinal do seu menino. Um arrepio de preocupação percorreu sua coluna. Largou o brinquedo e guinchou. Nada aconteceu. Guinchou de novo, e mais uma vez teve como resposta apenas o silêncio. Se aquilo era uma brincadeira nova, não estava gostando.

A raposa pegou o soldadinho de brinquedo e resolveu voltar, tomando o mesmo caminho pelo qual viera. Quando estava saindo do bosque, viu um pássaro azul voando, gritando. A raposa ficou paralisada, dividida.

Seu menino estava esperando para continuar a brincar. Mas... pássaros! A raposa passava horas e horas observando pássaros de dentro do cercado e tinha arrepios de prazer ao vê-los cortando o céu de forma tão inconsequente quanto os relâmpagos que via nas noites de verão. Sempre ficava fascinada com a liberdade que via no voo deles.

O pássaro gritou de novo. Dessa vez, o som veio do meio do bosque e recebeu um coral de respostas. A raposa hesitou por mais um instante, espiando o bosque à procura de outro sinal da manchinha azul que voava.

Foi quando ouviu, atrás de si, uma porta de carro sendo fechada, depois outra. A raposa partiu a toda, sem se importar com os espinheiros que arranhavam seu rosto. O motor do carro ganhou vida com um rugido. A raposa parou de súbito, na beira da estrada.

Seu menino baixou o vidro da janela e esticou os braços para fora. Quando o carro partiu, cantando pneu e erguendo no cascalho uma nuvem de poeira, o pai gritou o nome do menino

:— Peter! E o menino gritou o outro único nome que a raposa conhecia:— Pax!

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⏰ Last updated: Jun 24, 2019 ⏰

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