Garota Viajante

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Sinto falta da segurança de não precisar me aventurar no desconhecido, isso sempre me assustou; a vida adulta tem dessas coisas e eu tenho ainda mais. São tantas pessoas, quantas delas experimentaram o amor? Quantas delas sentem dor? Quantas anseiam chegar em casa para os braços de alguém ou para um copo cheio de ausências? Sempre me pergunto quais os pensamentos e sentimentos de quem senta ao meu lado no ônibus, pessoas são universos a serem desbravados, planetas a serem explorados e talvez, só talvez, minha maior aventura esteja sentada ao meu lado.

Tenho uma rotina e estou exausta, todos os dias seguindo o mesmo caminho para o mesmo lugar, ver as mesmas pessoas com as mesmas manias de se auto destruírem na intenção de pertencerem. Eu nunca soube me encaixar, houve um tempo onde tudo que eu quis foi entrar nos moldes e ser alguém adaptável, isso me corroeu até sobrar tão pouco de mim que não mais me reconhecia como eu. Hades, quem é você além de um nome estranho e fones de ouvido? Pergunto-me constantemente se alguém aqui me enxerga, sinto como se fosse invisível, será que alguém me vê? Será que posso continuar observando expressões e sorrisos sem ser notada? Eu não sei, mas gosto da sensação de ver semi-conhecidos sorrindo de piadas toscas com os amigos, me sinto bem porque criei afeição a esses estranhos que por acaso pegam o mesmo ônibus que eu. Nosso destino? Além da galáxia, posso ir para onde eu quiser se colocar a trilha sonora certa e fechar os olhos.

Me tira a paciência ter que esperar por horas por um ônibus que levará horas para me levar a um lugar onde eu passarei horas me estressando e esperando exatamente pela hora de pegar o mesmo ônibus de volta. Mas as vezes – só as vezes – a viagem vale a pena. O universo é feito de energias e estar perto de algumas pessoas é como recarregar as baterias; e é assim que me sinto ao pegar um ônibus lotado às 22h de um dia exaustivo e ordinário. Basta um sorriso que me desmonta, conserta as peças e me faz sorrir junto. Ah, já comentei que o sorriso nem é pra mim? É, soa estranho. Juro que não sou uma aberração, só não tenho culpa de ter sido atraída para o sorriso mais envolvente que existe. Eu não sei qual o nome dela e nem mesmo se ela já chegou a me notar nesse mar de pessoas. Mas tudo bem, vou continuar no meu lugarzinho escondido enquanto o som da risada de alguém que não me conhece me aquece o coração.

– // –

Pessoas bonitas me deixam desconfortável. Não me pergunte o porquê, eu não sei. Mas parece que eu esqueço como existir perto de alguém que acho atraente, quase como se existisse uma regra do "se humilhar e parecer idiota na frente da pessoa por quem você tem uma quedinha". Minha vontade é xingar tudo e reivindicar meu direito de chegar e falar um "oi, tudo bom?" sem precisar de toda uma preparação mental só para iniciar uma conversa. A verdade é que eu não consigo mesmo então saí de casa decidida a iniciar uma conversa. Parecia fácil até ver ela subindo no ônibus.

Você consegue, Hades. Respira, respira, respira. Você só precisa dizer "oi!".

Talvez esse pensamento tenha durado um pouquinho mais do que parece, a viagem inteira, eu acho; mas tudo bem, na volta eu falo. Oh droga, por que meu coração acelera tanto só em pensar em dizer um simples cumprimento? Daria qualquer coisa pra ser menos idiota. Não consigo contar quantas chances de conhecer pessoas incríveis só por medo de falar, foram muitas mas o fato de que sou horrível com números também ajuda. Fala sério, quem gosta de números? Palavras são tão mais gostosas. Poemas e contos, histórias e vidas em um entrelaçar de letrinhas. Soa tão melhor que teorias do valor de X ou sei lá como funciona isso. Não sei nem conferir troco sem me tremer inteira. Mas é bem irônico, não? Palavras são um lar pra mim e mesmo assim minha boca se recusa a deixar sair um monossilábico.

Já foi decidido, na volta eu vou falar.

É necessário reunir muita coragem, afinal, quem fala com estranhos no ônibus, não é? E quando digo estranhos, não quero dizer no sentido de "pessoas que você não conhece e sua mãe te disse para jamais falar", digo no sentido de "pessoa muito, muito estranha que você não conhece e os filmes de serial killer te disseram pra não falar"; essa sou eu, a serial killer em potencial, obviamente. Vou matar todos esses pensamentos aleatórios que me fazem não conseguir dizer um "oi" para alguém que quero ser amiga. Droga, estou tendo mais um monólogo mental enquanto encaro ela na fila do ônibus, faz alguma coisa, fala alguma coisa, PARA DE OLHAR. Tarde demais garota do submundo, ela viu.

Oficialmente vou eleger esse o momento mais estranho da minha vida até agora, ela me viu olhando e ela. Veio. Falar. Comigo. DÁ PARA ACREDITAR? Ela veio mesmo. Vejo em câmera lenta ela sair de perto dos amigos, caminhar até onde estou parada e apoiada em um pedaço de ferro, estava preparada para ouvir algo parecido com "ta olhando o que, aberração?" ou talvez "perdeu algo no meu rosto?", mas a vi sorrir de uma forma tão doce que conclui que seria impossível receber algo desse tipo vindo dali, pensei que talvez pudesse ouvir um "te conheço de algum lugar?" seguido de um sorriso mas o que ela falou me surpreendeu muito mais. Parada do meu lado, como se já fossemos amigas e gesticulou com os braços para que eu tirasse o fone de ouvido.

- Oi! Tudo bom? – Falou ainda sorrindo.

Sim, é uma coisa, ela fala sorrindo, dá para acreditar? Ela é tipo um personagem de série de comédia que deve sorrir até quando está falando sério, o que é totalmente o oposto de mim, que até quando estou sorrindo fico séria. É uma droga, minha mãe costuma dizer que tenho cara de enterro, não sei por que, afinal de contas em um enterro ninguém fica sério, fica? Todos ficam chorando e catarrentos e todas essas coisas que todos relacionam com a morte. Espero não ter soado insensível, mas é que vejo a morte como algo bonito, droga, agora sim estou parecendo uma serial killer em potencial.

- Oi, tudo sim – E se passou uma eternidade constrangedora depois da minha resposta extremamente sociável e simpática, até que percebi que ELA TINHA FALADO COMIGO e eu estava arruinando a minha única chance de conseguir soar ao menos minimamente como alguém legal. Precisava agir rápido e reparar a merda que eu tinha feito. Então pensei em agir rápido como naquela historia da lebre e da tartaruga que disputam uma corrida onde a tartaruga mesmo sendo lenta ganha a disputa e coisa e tal, exceto que todo esse exagero de pensamentos estavam me fazendo ser literalmente a tartaruga, só que sem ganhar corrida nenhuma. Uma tartaruga real e sedentária que dormiu no meio da droga da corrida e simplesmente desistiu da competição. Inferno, Hades, para de criar monólogos mentais e FALA. Mas antes que eu pudesse continuar, ela falou.

- Que bom! Eu to suja ou algo do tipo?

- C-como assim?

- É que faz um tempão que meus amigos avisaram que você ta me olhando e sorrindo. – Agora eu preciso realmente pensar rápido, ela me viu olhando, e eu tava... Sorrindo?

- É... Eu não... Eu não estava... Sabe... Quero dizer... Eu não realmente estava olhando pra você. – "Eu não estava olhando para você"? É sério isso? Foi a melhor coisa que eu consegui pensar? Ótimo. - Eu só costumo viajar nos meus pensamentos e acabo descansando a vista em algum lugar aleatório, desculpa.

- Lugar aleatório? Você está falando que eu com todo meu glamour e sobrancelhas maravilhosas sou um... Lugar aleatório? – Ela ri e ergue uma sobrancelha, na mesma hora respondo

- NÃO! Não foi isso que quis dizer... Eu só... – Começo a gaguejar

- Relaxa! Só estou brincando. – Ela me interrompe e cai na gargalhada.

- Ah, que bom – Tento não soar tão patética quanto me sinto e pelo menos um pouco confiante, o que nem de longe sei o que é sentir, mas sou interrompida novamente antes de ter a oportunidade de continuar a conversa, mas dessa vez não por ela e sim pelo ônibus que chegou.

- Então é isso, garota viajante. Até a próxima. – Ela estende a mão para mim e eu retribuo o gesto, então ela fez algo que literalmente tornou esse momento estranhamente épico, ela me puxou para perto, o que me fez congelar completamente (não sou muito fã de movimentos bruscos sem aviso prévio) e simplesmente sussurrou – Não culpe seus pensamentos, não foi aleatório.E a propósito, meu nome é Júlia.

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⏰ Last updated: Jun 30, 2019 ⏰

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