MUTILAÇÃO

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ANDEI VENDO NAS INTERNETES DA VIDA e postagens do Facebook que vários são os jovenzinhos condenam a mutilação. Eles fazem piadas, postam fotos de pessoas se cortando só para falar mal enquanto outras pessoas criticam nos comentários. Então, vim a este encontro, nesta madrugada, para falar um pouco sobre esta questão. Vim para falar sobre como algumas pessoas expressam seus sofrimentos.

Eu, como muitos aqui, nunca tomei remédios de tarja preta, nunca usei drogas com o objetivo de aliviar minha dor e nem mesmo cheguei a ter uma depressão de caso clínico, apenas algumas curtas semanas de melancolia. Mas eu cheguei, sim, a me cortar. Olhem meu rosto, olhem minha pele lisa e perfeita. Posso até mesmo não ter cara nem aparência de quem faz essas coisas, mas quem disse que nunca me cortei?

Me lembro de uma vez... Eu estava sentada num balanço quando tive minha primeira grande decepção. Chegaram uns meninos brutos da minha rua e me empurraram no chão, borrando com a terra todo o meu vestido azul, para poderem me expulsar dali e balançar em pé nas balanças da pracinha. Naquele dia usei meus olhos para cortar meus pulsos e as costas das mãos, esfregando-as no rosto enquanto chorava. Foi minha primeira vez.

Mais tarde, aos onze anos, quando minha professora de álgebra tentou me obrigar a ser uma boa aluna cortando fora minhas tranças, empunhei as lâminas aquecidas por meus berros infantis e passei nos dedos, cortando bem as dobrinhas e as linhas das mãos. Desta vez eu pude denunciar. Mas como minha mãe se fez cúmplice da professora, uma faca de ódio feriu meus rins.

Mais tarde, os problemas foram só piorando. Por ser uma pessoa muito calada e rebelde, acabei não me enturmando com os colegas; nem na escola, nem na igreja. Como eu não entendia como me relacionar bem com as pessoas, pensava que todos eram contra mim e todos iriam me rejeitar. E era assim que eu me cortava todos os dias indo à escola; eu cortava nos braços e mordia a língua para sentir um gostinho.

Os coordenadores e professores se preocupavam muito com meu caso de quietude e vacância de palavras. Foi então que decidiram falar com meus pais. Depois de umas boas conversas e três semanas de consultas com uma psicóloga, descobriram que eu sofria muito por causa da violência doméstica. Meu pai batia em minha mãe toda semana e eu não aguentava mais aquilo. Toda vez que ouvia os gritos e gemidos, me escondia no quintal da casa, entre os arbustos, e usava um punhal para cortar o lado esquerdo de meu coração como se fosse uma massagem para me acalmar.

Depois que passou o problema com meu pais, minha mãe me implorou que parasse de ficar me cortando. Então joguei minhas lâminas fora e não chorei mais por longos quatro anos. Foram quatro anos de alívio em que voltei a falar com as pessoas, voltei a dar risada alto, voltei a fazer tudo como uma adolescente normal.

Foi aos quatorze anos que percebi que estava algo errado. Eu estava chegando em casa e percebi que estava sendo perseguida. E então todos os meses eu sonhava com o meu perseguidor. Eu o via nos olhos de minhas amigas questionando minhas roupas e minha pose, via nas mãos dos meninos que chegavam com o peito estufado como frangos. Era um homem grande feito de lâminas de alumínio e ele me possuía em meus pesadelos. Ele tinha um falo cortante que me fazia sangrar durante a posse.

Depois de ter sangrado muito com o homem feito de lâminas, aos quinze anos, decidi afogar aquela ânsia horrível e viver mais a vida. Comecei a namorar um rapaz da minha escola e apostei que ele seria tudo de bom para mim. Apostei que ele estaria lá para me ajudar quando eu quisesse me mutilar de novo, apostei que me ajudaria a escapar de meus pesadelos, apostei que me ajudaria a escapar das malícias de minhas amigas quando me olhassem com aqueles olhos cortantes de novo. Mas foi justamente graças a este rapaz, chamado Alípio, que tive uma de minhas experiências mais perfurantes.

Pouco tempo depois do início de nosso pequeno namorico, Alípio me decepcionou de maneira tão embaraçosa que me deu até raiva. Ele me tomou em sua mão e me exibiu como um troféu para seus amigos e disse que naquela noite tinha se tornado homem. Como ninguém ali naquele meio de jovens imbecis tinha competência para me consolar, fui correndo para minha casa e comecei a cortar as solas de meus pés com o facão da gaveta da cozinha.

Então eu cresci, amadureci, me casei, tive dois filhos cedo e aqui estou eu, contando um pouco de minha história para vocês. Na semana passada eu perdi meu marido, mas como uma pessoa mais madura e mais calejada, apenas deixei cair em meu colo vários alfinetes e os senti furar minhas pernas. Durante o velório, vários parentes meus e dele soltaram tachinhas no chão para eu pisar, mas como desta vez eu não quis, não pisei em todas.

Acho que estamos aqui nesta reunião, ao lado do cemitério, para falar um pouco mais sobre o que é o sofrimento. E eu acho que cada um sofre de uma forma diferente. Há aqueles que sofrem só com a alma e aqueles que sofrem com materiais. Eu, atualmente, sofro com palavras. De cada gota de sangue que escorre por meu abdômen e por cada navalha que escorrega torta pelo meu rosto eu extraio uma poesia ou uma crônica. Acredito que toda emoção é útil para a arte e a tristeza não vai escapar.

Minha pele e meus ossos estão intactos, mas em meu interior, minha carne sangra e se transforma em tinta para escrever meu alívio e meu repouso. Com esta tinta também escrevi quem eu sou e minha história. E não me arrependo de minha mutilação, pois foi por me dissecar muito bem que hoje eu conheço cada pedaço de mim. E sem este sofrimento, eu não seria eu.

MUTILAÇÃOWhere stories live. Discover now