7. Santuário

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    Loki usa o braço esquerdo para pôr-me para trás bem devagar, não tirando os olhos da criatura que nos encara. O dragão está muito perto, não teremos tempo suficiente para defender-nos. Ele conta até três com a voz baixa e nós dois saímos disparados quando o terceiro número chega, corremos pela beira da praia e decidimos entrar mais à fundo na ilha. Aceleramos mais ainda quando ouvimos o barulho do dragão derrubando mais árvores vindo atrás de nós. Somos obrigados a parar quando vemos um muro de pedras à nossa frente. Não dá para atravessar, é alto demais. Se subirmos, o dragão nos pegará de qualquer jeito.
    Loki invoca suas armas e eu crio as chamas nas mãos. Esperamos o dragão chegar mais perto e então atacamos, mas a criatura abre as asas e voa para uma altura fora do nosso alcance. Syran bufa e fumaças saem de suas narinas, logo começa a inchar seu peito. Eu posso nunca ter visto outro dragão na vida, pois todos os dragões de Erisyr morreram na primeira guerra dos cinco reinos, no entanto graças a Hyrom eu sei muito bem o que aquela coisa está prestes a fazer.
    Olho para Loki que está ao meu lado e sua imagem desaparece como uma ilusão. Eu fui enganada como uma idiota e estou sozinha agora. Ouço Lamar gritar de longe:
    — ASTARTE, APAGUE AS SUAS CHAMAS!
    Levo alguns segundos para captar o pedido. Apagar as chamas? Por que eu faria isso? Já não tenho armas, como irei defender-me? Lamar está louco! É culpa dele se estamos aqui, foi ele quem teve a ideia. Porém, por que ele viria conosco para o Berço se não tivesse certeza de que sairia vivo?
    Talvez eu não devesse defender-me da criatura. Resolvo obedecer o meu gato dos olhos estranhos e apago a chamas. Engulo em seco enquanto esperavl o dragão cuspir seu fogo, mas ele para de supetão, seu peito desincha e ele volta ao chão, ainda encarando-me com seus olhos amarelos vibrantes. Está tudo bem, eu estou viva graças ao gato. Pensl em dar um passo para certificar-me de que eu não serei atacada, mas antes que eu possa o dragão ruge tão alto e forte fazendo-me cair para trás, machucando os cotovelos e trazendo à tona a dor no ferimento da flecha que acertou-me no penhasco Yallon. Ele vira-se e lá está Loki tentando confronta-lo. Aquele desgraçado reapareceu finalmente.
    O Deus faz um corte enorme nas patas traseiras do animal enquanto desvia das garras grandes superiores que tentam alcança-lo. Fura um dos pés dele depois de quase ser atingido pela calda do dragão que balança de um lado para o outro. Quando tenta feri-lo mais uma vez, é lançado para longe por uma única batida de asas poderosa, caindo por cima de algumas plantas que aliviam o baque nas costas. Loki leva um tempo para recuperar os sentidos e esforça-se para levantar o mais rápido que puder.
    — Diga a ele para não lutar contra o Syran, vai acabar morto. Ele é imortal — alerta Lamar assustando-me por já estar tão perto — Eu volto logo.
    — Espera, onde você vai?!
    Lamar corre para o meio das árvores sem responder e some de vista.
    As feridas no dragão começam a se fechar, todo o esforço de Loki foi inútil e ele está lá, pronto para mais um ataque como se não houvesse outra opção. Ele poderia muito bem usar sua magia outra vez e enganar a criatura, no entanto prefere enfrenta-la pessoalmente. Que tipo de Loki é esse? De qualquer jeito, toda essa coragem irá valer nada. Syran não atacou-me quando apaguei as chamas, provavelmente não atacará Loki se ele não estiver armado.
    O dragão só ataca aqueles que são ameaça.
    Levanto-me do chão e corro na direção de Loki antes que Syran cuspa seu fogo. O Deus olha sem entender minha reação repentina e não tem opção a não ser largar as adagas quando eu o empurro, fazendo-o cair novamente no chão.
    — Você está louca?! — ele pergunta irritado — Saia de cima de mim!
    — Calado você fica mais bonito, alteza — digo tapando sua boca. Loki tenta tirar-me de cima dele resmungando alguns palavrões e dizendo que iremos morrer, mas não saio até o dragão desistir de nos incendiar.
    Tiro a mão da boca do Deus e ele encara de um jeito estranho. Nessa posição, embora raivoso como um cão, possui um grande charme.
    — Eu ordeno que saia de cima de mim — diz entre dentes.
    — Tudo bem, mas tem que me prometer que vai guardar suas adagas e que não vai atacar o Syran — reforço o mais calma possível apertando o queixo de Loki.
    O Deus da Mentira franze as sobrancelhas confuso, ficando com uma expressão meio engraçada. Ele não havia percebido que o dragão está quieto.
    — Syran só vai ataca-lo se você for uma ameaça, compreende? Não tente matar a criatura — quando tenho certeza de que ele entendeu, levanto.
    Lamar aparece arrastando com dificuldade um cacho com seis bananas até os pés do dragão, que as pega e engole em menos de cinco segundos, fazendo-o parecer um animal de estimação, pois ele deita e lambe o gato preto por inteiro, deixando-o ensopado de baba.
    — Que gracinha — comento com uma voz aguda, rindo da cena — Ah, eu já ia me esquecendo, vossa alteza... — viro-me para Loki e dou um soco certeiro em seu nariz, fazendo meus dedos estalarem de uma vez só pelo choque — Isso é por ter usado suas ilusões comigo, SEU MENTIROSO!
    Loki pressiona a mão no rosto e pragueja-me. Fica nessa posição esperando a dor passar para dizer com a voz anasalada:
    — Eu tinha um plano, erisyana!
    Um plano? Que droga de plano é esse que consistia em abandonar-me para conseguir atacar o dragão? Quanto cavalheirismo da parte de um príncipe!
    — Já chega de brigas e sangue, pessoal — Lamar interrompe nossa discussão — O Santuário é logo ali.
    Evito olhar na cara do Deus mentiroso em todo o percurso. Uso esse tempo vago para perguntar-me: por que ninguém nunca soube do dragão? Okay, todos que o enfrentaram estavam mortos, exceto por Lamar, mas por que não é possível alguém de fora da ilha ver aquela criatura quando a mesma adentra o céu? Não existe ninguém além do gato que possa ao menos dizer a cor do dragão.
    — Isso tem cheiro de magia — penso em voz alta. Tudo aqui tem cheiro de magia.
    Lamar me estranha.
    — É uma barreira que o protege, impossibilitando sua imagem de ver vista por quem está de fora — deduzo — Estou certa? Isso é possível?
    — Está — confirma o gato preto.
    — Achei que nossos dragões estivessem extintos.
    — Syran não é como os que existiram na Primeira Guerra. Ele foi uma criação especial do Sol e da Lua, tem unicamente o dever de proteger o Santuário, nasceu pouco após a expulsão do povo da ilha.
    Confirmando o que Coriander disse em minha infância, no início, todos os erisyanos viviam no Berço de Erisyr até que os Lordes que protegiam o tesouro do planeta morreram e as guerras pela posse do mesmo iniciaram-se. Eu devo acreditar nas palavras do gato? São apenas lendas...
    Tem um dragão enorme em uma ilha repleta de mistérios, do que mais você precisa para acreditar, Astarte?
    O Santuário localiza-se dentro de uma montanha, a qual é rodeada pelo muro alto de pedras onde quase virei churrasco de dragão. Parecia um vulcão oco. De longe podemos ver algumas luzes amarelas e pequenas flutuando pela entrada escurecida pela noite de chegou.
    — Aquilo são virians, eles protegem o Santuário, atacam quem não tem permissão para entrar — Lamar olha Loki — Eu sugiro que fique onde está, filho de Odin, você não é erisyano.
    — Nunca foi de minha vontade estar aqui — Loki senta-se por lá mesmo e permanece observando-nos atravessar a entrada.
    É possível sentir uma energia totalmente diferente assim que aproximamos-nos. Ela faz esquecer de tudo que eu senti antes — minha tristeza pela morte dos meus pais e o medo de enfrentar Jarbas. Torno-me neutra e eu adoro a sensação.
    — Está pronta para falar com os Deuses? — pergunta Lamar, tirando minha concentração.
    Aquela energia é forte demais e a dor do ferimento em minha cintura passa ficar desconfortável. Talvez eu deva descansar por uma noite.
    — Não. É melhor voltarmos aqui amanhã cedo, vamos arranjar um lugar para dormir — digo segurando a região dolorida do meu corpo e refazendo meus passos até Loki.
    Seguimos Lamar a um lugar mais místico que o próprio Syran. Eu estou dentro dos livros de minha mãe. A construção que encontramos, mais velha que qualquer reino em Erisyr, são as ruínas de um palácio, o qual todos acham não mais existir devido ao tempo.
    Na maior sala há cinco tronos um ao lado do outro, com desenhos diferentes entalhados em seu topo — a representação de cada um dos elementos da natureza. Nas paredes, onde deveriam estar estendidas as elegantes bandeiras com o brasão do reino, há apenas tecidos velhos e desfiados de cor azul e vermelha. Em um deles a palavra "Malirad" destaca-se.
    — O que significa isto? — indago a Lamar. O gato pula em um dos tronos e sentou-se para lamber a pata.
    — Equilíbrio espíritual. "Mali", "Rad". O primeiro reino de Erisyr. Essa palavra é iliasen, nossa linguagem primordial.
    Iliasen. Minha mãe nunca contou-me sobre a primeira linguagem, afinal, não existem textos para estuda-la. Quanta cultura perdemos após nossa expulsão da ilha?
    O lustre que deveria estar pendurado no teto está caído no chão com pedaços de vidro espalhados ao seu redor. Embora seja noite, a luz do luar entra pelas fissuras do teto permitindo-nos vislumbrar boa parte dos objetos. Uma passagem que leva ao subterrâneo chama minha atenção, por instinto eu a sigo. Acendo em uma das mãos as chamas para afastar a escuridão e desço a escada acompanhada de Loki, também vencido pela curiosidade. Não é todo dia que encontramos a casa dos criadores de um mundo.
    Após alguns minutos de descida, chegamos a um compartimento que sobreviveu ao tempo e a sua crueldade. É magnífico! Tem um formato circular e no centro, uma espécie de altar pontudo. Em praticamente todas as paredes há estantes compostas por diversos livros empoeirados e objetos esquisitos intactos. No chão, um símbolo muito conhecido pelos fluoraneos: a grande estrela de cinco pontas, que representa a união dos elementos. Observo o altar de ferro e meus olhos arregalam-se ao notar que sua finalidade é ser a base para o Cristal da Criação.
    — Onde ele está? O Cristal — pergunto a Lamar acendendo uma das tochas da parede.
    — Não faço idéia — o gato suspira.
    Passo a mão em frente a uma estante para desfazer as teias de aranha que acumularam-se e limpo a poeira da lateral de uma capa preta. Solto um espirro logo após ler o título na língua que eu não domino.
    — Kreath' Erysien — tento pronunciar.
    — O som do "R" precisa ser mais puxado — corrige Lamar passeando como quem está em casa.
    — Igual aquela vibração de língua usada em aulas de canto?
    — Exato. Krrrrreath — o gato ensina em um tom engraçado.
    Deou a volta pela sala e paro em frente ao altar.
    — "Os cinco Lordes chegaram a Terra Santa, plantaram suas sementes, deram origem a tudo o que existe a mando de seus pais sagrados, o Sol e a Lua" — recito o parágrafo de um dos livros que li com Coriander, olhando para Loki, o qual não está entendo essa loucura. Aproximo-me do altar e toco com o dedo médio sua superfície hexagonal, no entanto recuo fazendo cara feia ao sentir uma pontada em meu ferimento.
    — Você está bem? — pela primeira vez, mostrando uma preocupação de verdade, Loki pergunta.
    — Estou — desvio o olhar  — Apenas preciso descansar um pouco.
    Encosto-me na estante mais próxima e deixo meu corpo deslizar até o chão. Coloco a mão na ferida e quando retiro está suja de sangue.
    Muito sangue.
    Loki não pensa duas vezes e vem até mim verificar.
    — Temos que leva-la de volta à Asgard — ele alerta mantendo-se calmo — Astarte precisa de um médico.
    — Bifrost não pode atravessar a barreira do Berço! — a voz de Lamar altera-se no meio da frase por desespero.
    — Por que não? — questiona o Deus.
    — QUAL PARTE DE "BARREIRA" VOCÊ NÃO ENTENDEU?! — explode o gato tão alto que meus ouvidos doem. O mesmo para, reflete e corre subindo as escadas sem dar explicações
    Loki invoca uma lâmina e a usa para cortar uma parte do tecido que visto. Com cuidado ele retira a camada grossa do curativo colocado pelos asgardianos, o movimento, por mais que seja inofensível, causa um choque em minha pele.
    — Mantenha a respiração controlada — ele pede — Preciso de algo para a limpeza. Álcool, de preferência.
    Olho ao redor. Obviamente não há álcool aqui.
    — Eu não entendo... Isso deveria ter sarado há muito tempo. Os médicos de Asgard usam ciência e magia. Nem cicatriz você teria — Loki rasga um pedaço do meu vestido para limpar a ferida e seus olhos super esverdeados alterados pelo fogo das tochas fixam nos meus ao perguntar: — Você tem algo a dizer?
    — O corpo erisyano só pode ser curado com medicamentos de Erisyr — dei uma pausa para respirar com medo da dor que o esforço causaria — Somos filhos da natureza.
    Lamar é experto. Eu tenho quase certeza de que meu gato está a procura de alguma erva cicatrizante.
    Se há algo que eu invejo nos asgardianos é sua saúde e facilidade de recuperação, eles não precisam passar por isto, basta usar sua magia.
    Ouço um barulho, o gato reaparece carregando algo entre seus dentes: uma pequena tigela de madeira; um esmagador de ervas e um galho com folhas verdes recém-colhidas.
    De onde ele tira toda essa força?
    — Tome — entrega as coisas ao Deus da Mentira, ofegante — É Damarasco. Esmague até virar uma pasta e coloque no ferimento, vai parar a hemorragia por algumas horas. Apenas limpe a região com um pano para tirar o excesso de sangue antes.
    Loki analisa as folhas na tigela.
    Damarasco. A erva mais usada em Fluorana também existe no Berço de Erisyr, a diferença está em cor e em sua eficácia. A que há em meu reino é capaz de fechar por completo a ferida.
    — Mas como foi que você conseguiu carregar isso até aqui, criatura fraca? — indaga Loki.
    — Por favor, CHEGA DE PERGUNTAS E TAPE LOGO ESSA FERIDA! — grita o gato desistindo da sua tentativa de ficar quieto, com a respiração totalmente descontrolada. Lembrei, ele odeia sangue e está mais nervoso que eu.
    Quando Loki começa a despejar a pasta verde e espumante na minha ferida, sinto um arrepio, seguido de uma sensação gelada. De vez quando escuto uns sussurros do gato louco para si, como por exemplo: "ela vai morrer, ela não pode morrer, temos coisas a fazer, oh céus." Continuo com a dor, porém a saída do sangue está sendo interrompida aos poucos. Lamar vendo isto vomita bem na minha frente um montinho de pelos e ração úmida. Viro a cabeça para não ficar enjoada.
    — Vou ter que cortar novamente seu vestido para improvisar uma atadura — explica o Deus da Mentira tomando minha atenção.
    O tecido é enrolado em volta da minha cintura com cautela. Depois de feito o novo curativo, eu inspiro profundamente. Loki senta-se ao meu lado com uma expressão de puro alívio, o que deixa-me um tanto surpresa. Ele parece importar-se de verdade.
    — Obrigada — digo fracamente.
    O Deus permanece em silêncio, ergue a cabeça e fecha os olhos, sem comentário algum. Eu não continuo esperando, ele apenas está seguindo ordens de Odin, é claro.
    — Bom... — Lamar, meio desorientado e sujo de suco gástrico de felino, nos avisa — Vocês merecem pregar os olhos, enquanto isso verei o que consigo para a dor da Rainha.
    Rainha...
    — Eu não sou Rainha ainda... — replico como uma criança tola antes que o segundo efeito da Damarasco me domine. Adormeço.
    A noite é fria demais. A sala da Pedra da Criação faz-me dormir encolhida como um bebê no útero da mãe. O vento consegue correr pelos degraus da longa escadaria e nos atingir sem piedade. Eu não tenho forças para levantar-me e tentar aquecer meu corpo andando, mas movimento-me de vez em quando. Lembro de dormjr sentada, porém quando acordo , estou deitada no lugar mais inusitado possível: nos braços de Loki. Meio lenta de sono, olho para o Deus que ainda dorme. E ele está... Belo.
    Concentre-se no que importa, Astarte. Meu trono, meu reino.
    Percebo o quão o seu corpo é confortável. Percorro levemente os dedos sobre o tecido escuro cobrindo o peito do Deus e assusto-me ao ver Lamar na escadaria com aqueles olhos azul e amarelo grudados em mim.
    — Vocês formariam um ótimo casal, embora esse asgardiano não seja a pessoa mais bondosa — comenta o gato mordendo a coceira em uma de suas patas.
    Um belo casal? Não quero relembrar as milhares de vezes nas quais esse pensamento tomou meu tempo.
    Impossível. Loki não é tão louco; eu não sou tão louca. Por mais que eu goste de seu modo de falar e de seus tiques nervosos com o cabelo super liso, o egocentrismo de Loki me ferve o sangue.
    Recordo de minha mãe dizer que o Deus da Mentira é um rapaz estranho e eu o defender com: "Nem todos precisam ser extrovertidos", entregando a ela meu pequeno segredo de paixão. Coriander nunca apoiara um casamento com um dos filhos de Odin, mesmo sabendo sobre minha admiração pelo irmão desprezado.
    "Seja a Rainha, não apenas a esposa de um Rei" — dizia a mulher que casou por amor.
    Eu aprendi a preferência por reinar sozinha, no entanto estar ao lado de Loki, observando-o como costumava fazer em minha infância, desencadeia ideias inaceitáveis para a pessoa que tornei-me ao longo das décadas.
    — Serei muito grato se vocês pararem de me encarar desse modo — diz o Deus acordando. Esfrega o olho direito com uma das mãos. Eu rapidamente saio de cima de seu outro braço antes que ele tente levanta-lo. Loki para e nos analisa desconfiado — Eu perdi algo?
    Quer dizer, além do comentário sobre formamos um "belo casal"? Não.
    — Astarte, precisamos ir ao Santuário — Lamar fica sério para disfarçar. A palavra "Santuário" desperta-me.
    Levanto como se tivesse recebido uma dose de energia instantânea. A dor na minha cintura é inexistente, seja lá o que Lamar fez enquanto eu estava desacordada, funcionou.
    — Enquanto isso eu arranjo o que comer. Tem uns equipamentos de pesca naquele barco velho que nos trouxe — Loki levanta-se preguiçoso — Não vejo a hora de ir embora deste planeta — resmunga e passa pelo gato, subindo as escadas e esticando os braços.
    Após o longo corredor iluminado pelos pequenos Virians que eu e Lamar atravessamos ao entrar na "montanha oca", posso vislumbrar finalmente o cenário do meu sonho. É mais incrível do que eu lembro. Tiro meus sapatos e minha bolsa com a pelugem de lobo de Hyrom e entro no lago sem nem esperar instruções do gato preto.
    A água escura está morna e confortável. O lago não é fundo, facilmente chego à árvore dourada caminhando. Os Virians voam ao meu redor a fim de certificar-se de que minha presença é permitida e logo afastam-se, voltando para os galhos da árvore. Dou uma última olhada para Lamar que está sentando na margem do lago observando-me apreensivo. Subo no pequeno monte de terra que há abaixo do tronco, encontro uma posição boa para meditar e fecho os olhos.
    Demora alguns minutos para minhas pálpebras pesarem. Sinto como se eu não estivesse no mesmo lugar; a temperatura torna-se outra, assim como a energia que tem uma força diferente, até mesmo para o erisyano mais religioso.
    Meu corpo e meu espírito separam-se como nosso céu alaranjado abandonado pelo Deus Sol. Assim que torno a abrir os olhos, Lamar desaparece. Estou sozinha.
    Ouço uma risada aguda e meu coração dispara. A voz de várias crianças, eu diria que cinco, brincando juntas, rindo felizes. Quando viro ao redor procurando por elas não há ninguém. Observo a água em meus pés...
    As vozes vêm do próprio lago negro.
    Estou com medo, nervosa. Congelo ao ver diante de mim uma garotinha morena de cabelos cacheados, soltos e bagunçados, encarando-me. A mesma sorri e saltita ao meu redor várias vezes, espirrando água para todos os lados e cantando com sua bela voz uma música que se divide em quatro versos. Ela termina, volta a encarar-me e diz:
    — Você precisa cantar comigo a canção da Raios de Sol... Ele vai gostar!
    Ele? Quem vai gostar? A garotinha inicia novamente o primeiro verso da música e eu estou começando a reconhecê-la.
    "A noite cai na árvore
    Brilhante como o Sol no céu
    Refletindo a sua luz
    Dourada como um anel"
    — Feito para a Rainha, como uma prova de amor, transformado em vermelho, a cor de toda sua dor — a garotinha permanece  esperando que eu acompanhe-a. E eu canto por instinto.
    "Causada por traição
    Tomando seu coração
    Trazendo ela a Erisyr
    Fertilizando o nosso chão"
    "Os Deuses se alegraram
    Por saber que sua missão
    De dar vida a raios de Sol
    Veio a se completar então"
    Cantamos juntas até a última frase e a garotinha sorri contente.
    — Então você se lembra...
    — Eu me lembro? De quê? — pergunto confusa.
    — Da música da nossa mãe. Aquela que Erisyr ensinou para ela.
    Erysir... ensinou pra mamãe essa música. Quem é Erysir? O meu planeta ensinou uma música para minha mãe? Eu não sei se tento entender a parte em que o planeta é tratado como um ser vivo ou a parte em que uma garota desconhecida chama Coriander de "nossa mãe."
    Aquela música... Eu conheço a letra inteira, mas não recordava de tê-la cantado antes. Certamente foi uma das cantigas que Coriander ensinou-me quando criança, as do tipo que apenas a melodia tocada faria-me lembrar.
    Ela fala sobre uma árvore que reflete uma luz dourada como a do sol, depois sobre o anel de uma Rainha, que foi dado a ela pelo amor de sua vida, mas era pura mentira, pois de alguma forma isso a matou; a traição matou a Rainha. Não dá pra saber de verdade como ela morreu, mas algo dentro de mim diz ser um suicídio.
    A parte que me fez bater mais a cabeça é "trazendo ela a Erisyr, fertilizando o nosso chão." Isto me faz pensar que a Rainha não é ersysiana e que ela veio ao planeta. Mas... se Erysir for tratado como um ser, igual como a garotinha sorridente em minha frente deu a entender, então a Rainha, agora erysiana, fora direto para os braços dele.
    No último verso percebemos que o corpo sem vida da Rainha transformou-se na árvore mencionada no início da música, e que tudo fazia parte do plano dos Deuses.
    — É a mesma árvore... — deixo o pensamento escapar após a reflexão.
    Raios de Sol. É o nome da árvore dourada atrás de mim. A árvore do meu sonho.
    A garotinha transforma-se em água e se une ao lago negro enquanto eu ainda mantenho os olhos nela. Viro-me para a árvore dourada, suas folhas soltam-se e agora pessoalmente vejo a criação daquele mesmo ser com pele vermelha da cor da terra. Seus olhos são tão brilhantes e dourados quanto eu lembro, ficam encarando por alguns segundos quando um ruído corre pela caverna, causando-me um arrepiou.
    Pássaros? Alí dentro?
    O ser de chifres aos poucos vai ganhando outra cor de pele, tornando-se menos "místico." Em questão de segundos toma a forma de um homem bem vestido. Se eu o encontrasse em outro lugar, acharia que é um Rei.
    — Assim está bem melhor, não acha? — ele pergunta com uma voz suave, porém cheia de presença.
    Eu não tenho uma reação imediata, então ele continua:
    — Você já sabe por que está aqui, Astarte Sigyn D'Erysir Belshazar?
    Espere... Ele disse meu nome? Meu nome inteiro?
    — Não — respondo com a voz presa.
    Ele disse "D'Erisyr"...
    Um forma-se em minha garganta.
    Coriander é a única pessoa em todo o Universo que me chamava de "Astarte Sigyn D'Erysir". Para todas as outras pessoas eu sou apenas "Astarte Belshazar", já que o comum é as famílias reais terem apenas um sobrenome.
    Há algo nesse homem que me é muito familiar. O cabelo, os olhos... São iguais aos meus.   
    — Quem é você?
    O homem sorri pela pergunta.
    — Seu verdadeiro pai.

Astarte e o Cristal da Criação | fanfic loki (PAUSADA) #RaposaDeOuroWhere stories live. Discover now