INÍCIO

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-Acho que já é hora de dormir mocinha.

Clair disse enquanto colocava a neta na enorme cama delicadamente e a cobriu com o seu cobertor preferido, que segundo ela, a protegia de todos os males. Manuela era uma criança muito ativa e praticamente pulava o dia inteiro. A avó não conseguia entender como ela não chegava caindo de sono a essas horas.

-Me conta uma historinha por favor, vovó. -A criança pediu com aquele olhar de "cachorrinho pidão".

-Está tarde meu amor, você já deveria estar dormindo a uma hora dessas! -Tentou convencê-la de deixar a história para outro dia, mas como conhecia muito bem a neta que tinha, sabia que era em vão.

-Vai ser rapidinho, estou cansada, vou dormir como um anjinho... -A pequena imitou um bocejo e Clair não conseguiu segurar uma risadinha. Manu era a cópia fiel dela mesma, e isso a enchia de orgulho, talvez por isso, fosse tão boa quanto ela, algum dia.

-Tudo bem, você ganhou, mas não conte nada aos seus pais, senão eles irão me colocar de castigo! -Percebeu que os olhos da pequena se arregalaram diante da declaração, a inocência no seu estado puro.

-Eles podem fazer isso, vovó? -Perguntou assustada.

-Não meu anjo, eu estava brincando. Agora, que história quer ouvir? -Apesar de já saber a resposta, Clair quis tentar a sorte.

-Conta a da princesa unicórnio. -Pediu.

-Não quer que conte outra, querida? Já escutou essa história tantas vezes, já deve conhecê-la de cor e salteado! -Tentou mais uma vez, sem sucesso.

-Não vovó! Ela é curtinha, não vai demorar nada.

-Bom, se insiste, essa será a que contarei. -A senhora não entendia como uma criança com apenas oito anos de idade, poderia ser tão persuasiva, mas então imagens do seu passado vinha até sua mente, e tudo se explicava como em um passe de mágica. -A história se chama "A domadora de Unicórnios" -disse se sentando de maneira mais confortável na cama -e ela começa assim...

"Era uma vez, há muitos anos atrás, quando as criaturas mágicas ainda podiam transitar tranquilamente por este mundo, existiam algumas espécies que hoje tristemente já não são encontradas. Dentre elas, haviam macacos voadores, burros falantes, cavalos alados, duendes e mesmo que fosse rara, havia uma espécie que era temida e desejada ao mesmo tempo. Sua pele era iridescente e podia hipnotizar a mais pura das almas, até levá-la à loucura. Seu rabo e crina eram multicor e o mínimo toque era capaz de deixar uma pessoa fora do seu espectro por vários dias. Mas o mais perigoso de tudo era o chifre que enfeitava a cabeça do animal, bem no meio da sua fronte e era embebido em um veneno mortal, e uma só gota do veneno, tinha a força para derrubar a todo um exército. Por isso muitos os caçavam e tentavam ter o controle daqueles que agora conhecemos como Unicórnios..."

-Vovó, eles eram malvados, não é? -Manu sempre fazia a mesma pergunta e Clair lhe dava a mesma resposta.

-Sim, querida. Continuando...

"Os pobres animais não tinham culpa de haver nascido assim, foi a decisão do universo que os fez letais e ao se ver em perigo, eram obrigados a se defender e por isso, muitas outras criaturas, com medo de todo esse poder, se dedicavam a caçá-los e eliminá-los, assim se sentiriam mais seguros. Essa era a lógica dos seus pensamentos irracionais, e justamente por essa razão, sem saber, estavam criando uma guerra que ultrapassava todas as proporções inimagináveis. E assim, foi criada a Ordem de Caçadores de Unicórnios, que prometia paz e segurança, porém nada mais eram do que assassinos que se aproveitavam dessa fragilidade e usavam a pele e o veneno das suas vítimas para derrotar os inimigos. Havia uma pequena parcela da sociedade que achava aquilo intolerável, e por conta própria, começaram a caçar os unicórnios e a treiná-los para se esconder e detectar qualquer tipo de ameaça. Mas aquilo era uma tarefa difícil, pois não todos podiam chegar perto dos animais sem ser hipnotizados por sua pele e aqueles que conseguiam esse feito, ao tocar sua crina, entravam em um estado de sono profundo. O mundo estava ruindo lentamente, pelo medo de alguns e pela ganância de outros...

....-Yosun, onde está indo a essa hora? -Vardar indagou à pequena que tentava sair da casa, sem ser vista, falhando miseravelmente.

-Uma amiga me convidou para... para tomar um sorvete. -Yosun disse com a voz tremida, rogando para que o pai acreditasse naquela mentira lavada.

Na verdade, ela iria até a floresta perto de casa, pois jurava que havia visto um unicórnio ali, no outro dia. Ela precisava dizer a ele que escapasse, pois a Ordem dos Caçadores viria a qualquer momento a Onul e ela temia pelos pobres seres.

-Tem certeza disso? -O velho homem não era ingênuo e conhecia muito bem a filha que tinha. Yosun era experiente em inventar histórias mirabolantes e desculpas esfarrapadas para fazer o que quisesse. Uma vez, ela desapareceu e voltou tantas horas depois, que ele estava pensando seriamente em chamar os elfos para tentar encontrá-la. Mas eles tinham uma regra de conduta. Uma pessoa somente poderia considerar-se perdida, se ficasse mais de dois dias fora, o que para o homem era ridículo, sobretudo, tendo a garotinha como filha.

Vardar era viúvo. Havia se casado com uma Bruxa de Luz e sua vida era feliz e tranquila, quando soube da gravidez da esposa, deu uma enorme festa em homenagem. Todos as criaturas mágicas da redondeza foram convidados. Haviam elfos, outras bruxas, duendes, e até mesmo alguns trolls, a festa durou três dias e teve tanta comida e bebida que alguns tiveram que ser carregados até suas casas.

A gravidez ocorreu normalmente, mas quando o dia do parto foi se aproximando, ele começou a sentir algo estranho, como uma premonição de algo ruim estava por acontecer. E assim foi. Yosun nasceu no mesmo dia que sua mãe partiu, levando um pedaço do seu coração consigo. No começo ele não suportava ver a filha, seu rosto idêntico ao da amada, o lembrava da sua perda. Até pensou em dá-la, mas quando percebeu que estava sendo cruel com uma bebê inocente, sentou no chão do quarto da pequena e chorou, até que toda a mágoa e tristeza foi purgada do seu sistema. Desde então, ele ama e protege a filha como um tesouro, já que ela é o pequeno presente que Miry o deixou antes de partir.

-Sim papai, olha, se quiser pode ligar para ela e perguntar. -Yosun declarou segura de si, sabendo que se o pai realmente ligasse para a amiga, ela confirmaria toda a história.

-Tudo bem, pode ir, mas a quero de volta em no máximo três horas, entendeu mocinha? -Desconfiado, Vardar decidiu dar um voto de confiança.

-Obrigada papai, você é o máximo! -A pequena deu pequenos pulinhos de alegria e saiu praticamente correndo da casa, antes que o pai mudasse de ideia.

Sabendo que estava sendo observada, fez o caminho até a casa da amiga, porém algumas ruas antes, quando já não estava sob a vigilância do pai, deu a volta e entrou na enorme floresta que enfeitava os jardins daqueles que viviam na concentração.

Encontrou com alguns duendes brincando e depois de lhes entregar algumas pedras e bugigangas para evitar ser incomodada, prosseguiu seu caminho até o lugar secreto que havia encontrado dias antes.

A floresta era gigante e separada por zonas. Não era permitido entrar em qualquer uma, já que de acordo às regras de conduta, eram perigosas e poderiam colocar em risco a todos. Segundo os criadores das regras, os Antigos, ali haviam lugares enfeitiçados pelas Bruxas de Fogo, outros lugares continham monstros que lhe arrancariam a cabeça e você nem perceberia e alguns lugares eles simplesmente baniram o acesso, sem dar maiores explicações.
Yosun sabia as regras de cor, o que não entendia, era porque não podia explorar um lugar aparentemente inofensivo, de modo que sem medo, caminhou pelo lugar que se começava a se transformar de belo a macabro, ignorando todos os sinais que gritavam que ela poderia realmente estar em perigo.

A garotinha estava concentrada apenas em encontrar o ser que pensava haver visto.

O chão que antes era coberto por flores de todas as cores, havia adquirido uma tonalidade negra, lodosa, morta.

Seus passos se detiveram por apenas alguns segundos, ao perceber aquilo, mas sua determinação era maior que todo e qualquer medo. Olhando em volta e constatando que estava completamente perdida, decidiu não se alterar. A solução era fazer o caminho contrário, assim encontraria a saída de volta. Ou pelo menos era o que pensava.

Conforme caminhava, percebia que ficava ainda mais perdida. No que havia se metido? Seu pai ficaria furioso quando ela não voltasse na hora correta.
Procurou por algo ou alguém que pudesse ajudá-la, mas como pensava, estava completamente sozinha. Seu coração palpitava tão forte, que no completo silêncio da floresta, podia escutar o eco dos batimentos cardíacos. De repente tudo à sua redor começou a dar voltas, e aquele som foi ficando cada vez mais forte se transformando em um zumbido dentro da sua cabeça, tão forte que em um momento ela estava em pé e no outro estava caída no chão, desacordada.

A Domadora de UnicórniosWhere stories live. Discover now