VII

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Caro Caracol,

Inicio esta carta com a certeza de que ela nunca chegará em suas mãos, mesmo com toda a vontade que eu possa nutrir e quaisquer esforços que possa empreender. Para começo de história, você sequer me conhece. E depois do que lhe ocorreu, tenho certeza de que nem se quisesse conseguiria. Eu o vi muito bem, mas acho que você nem percebeu minha presença. Se notou, ignorou, assim como a maioria dos humanos. Meus olhos infelizmente não tocaram os seus, logo não tivemos um contato completo – os olhos são a porta da alma, quer ela humana, quer animal; só visito almas de olhos que me convidam.

Você me apareceu em um momento monótono do meu dia escaldante. O sol estava quente o bastante para me fazer derreter e frio o bastante para não se importar, porque o sol é uma estrela cruel. Mas não tão cruel quanto quem inventou essas grades as quais me permitem ver o mundo recortado, seja por cortes horizontais, seja por verticais. Quando o encontrei, eu vasculhava o apartamento com os olhos buscando coragem para levantar do fundo da gaiola e fazer nada volteando ao redor do pau que a atravessa de ponta a ponta na parte superior. Fazer nada deitada fatiga.

Quando eu já estava dando voltas e voltas para tentar driblar o tédio, foi que microscopicamente graduei a visão até focar em você, vi-o espelhando enquanto se locomovia lentamente vidro acima. Não posso deixar de dizer que, naquele momento, foi como se eu tivesse ganhado ânimo para continuar meu dia. Naquele momento, mais que um caracol, você era o sabor da liberdade que nunca pude experimentar. Logo, conversar com você seria o mais próximo possível que eu poderia chegar da tal liberdade, do destino autônomo. É impressionante como nossa existência nunca é cerrada a nós mesmos, somos essencialmente dependentes, de estrangeiros, do mundo... do Outro. E o mais importante é sempre ter a certeza de que o menor dos detalhes ou a visita mais inexpressiva contribui assustadoramente para nos compor. A partir do contato com o estrangeiro, incorporamos o clandestino e preenchemos algum pedacinho nosso naturalmente vazio.

Eu o vi e foi o bastante. Contemplei-o até onde pude porque, quando ia dirigir-lhe a palavra, o terrível aconteceu. A vida é sempre assim: oferta-nos inesgotavelmente, mas para tudo há uma duração. E naquele momento eu havia percebido: o prazo do nosso contato havia esgotado; embora estrangeira e não me pertencente, minha liberdade se esvaia. Abruptamente você caíra da janela. Não sei se lhe faltou ânimo ou se sua casa pesou demais, afinal de contas é sempre muito pesado carregar nosso destino nas costas. Só sei que você caiu e provavelmente se esfarelou no chão seco do térreo.

Depois que você caiu, minha reação foi deixar-me tomar por uma forte onda de tristeza. Logo após, fiquei a pensar na sua possível morte ou na sua improvável salvação. Não tenho a resposta até hoje e é por isso que estou escrevendo esta carta, mesmo consciente de que não a enviarei para ninguém. Contudo, o destino sempre nos escuta e, principalmente, nos lê. Se ele quiser e seus olhos aproximarem-se dessas linhas tortuosas que rabisco, dará um jeito de fazer você subir até minha janela novamente para que eu saiba que continua vivo, quem sabe dessa vez eu possa te dar um oi.

Enquanto não tenho a resposta, fico com o que aprendi até aqui: a vida é breve. Obrigado, Caracol, por ter me ensinado. Não sou a mesma calopsita de antes. A vida é breve e nem mesmo carregar sua casa nas costas ou ter sempre seu destino em espiral ao alcance do corpo garantirá a eternidade. Mas é sempre imprescindível lembrar: não é porque é breve que não pode ser infinito. Tudo passa e passa rapidamente, mas é a forma como decidimos abordar as coisas e o quanto apreendemos de cada situação que determinará a nossa quantidade de infinitos experimentados. O segredo é sempre voltar-se para o desinteressante, para o despercebido, para o que a maioria dos seres ignoram. Se tudo tem prazo de validade, que se preencha a existência com o desinteressante, tenho certeza de que se apreciará mais tempo, infinitamente, embora cronometrado. Eu experimentei a liberdade mesmo enclausurada e foi tão bom e inexplicável. Tudo graças a uma visita estrangeira. A sua visita, Caracol. Obrigado novamente, da desconhecida que muito aprendeu com você e, no dia de sua visita, viveu seu primeiro infinito,

Quércia.

Como queimar em silêncio?Onde histórias criam vida. Descubra agora