Capítulo Único

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Visitar o mundo dos humanos era um mau hábito. E ela sabia disso.

Úrsula culpava sua juventude. A curiosidade sempre levava a melhor daqueles sem experiência. E que mal havia nisso? Ela tinha poderes. De que eles lhe serviriam se não podia usá-los?

Então, à noite, ela se transformava. Trocava seus belos tentáculos por aquelas duas coisinhas horrorosas que os humanos chamavam de pernas. Ela queria saber o que eles tinham de especial para causar tanto receio nos seres do mar.

Acabou por descobrir que, na verdade, os humanos não tinham nada de especial. Eram criaturas fracas, manipuláveis e sentimentais demais. Ao menos sabiam dar boas festas. Úrsula se divertia nos vilarejos onde sempre havia boa música e boa comida. A Bruxa do Mar dançando, imaginem só. E ela tinha de admitir, nada era tão delicioso como um peixe saído do forno.

Nessas idas e vindas, acabou conquistando a atenção de um rapaz. Afinal de contas, seu corpo de humana não era de se jogar fora. Os dois passaram muitas e muitas noites se divertindo juntos. Antes do amanhecer ela escapulia por entre os lençóis, deixando o homem suspirando o nome de Vanessa sozinho.

Úrsula não gostava de se demorar muito, sentia falta do mar. Seu lugar era no oceano, no palácio do Rei Tritão onde podia exercer sua influência a seu bel prazer. Ela agitava aquele castelo como ninguém. Tritão era um rei sem graça, reclamando pelos cantos suas perdas e destilando seu ódio pelos humanos.

Se ele ao menos soubesse tudo o que ela aprontava.

Numa noite, enquanto estava com seu belo rapaz, qual não foi sua surpresa ao vê-lo se declarar para ela. Dizendo que a amava!

Case comigo, Vanessa. Eu sei que sou um rapaz simples e que teríamos uma vida modesta. Mas também sei que podemos ser felizes juntos. Eu te amo e não posso viver sem você.

Não respondeu as juras de amor dele e o tolo tomou sua falta de palavras por timidez. Depois dessa fatídica ocasião, ela nunca mais voltou. Não perderia seu tempo com coisas inúteis como o amor.

Às vezes, Úrsula pensava nele. Ela se perguntava o que teria acontecido depois de tê-lo abandonado. Por quanto tempo ele tinha chorado e se lamentado sobre o seu coração partido? Procurado por Vanessa, uma mulher que se quer existia de verdade.

Bem, pensou consigo, ao menos ele era bonito.

Dando sua curiosidade com o mundo humano por satisfeita, Úrsula voltou seus esforços para a corte real. Com os seus poderes seria capaz de conquistar todos os oceanos para si.

Sendo inteligente, Úrsula nunca desperdiçava uma boa oportunidade quando essa lhe era apresentada. Foi assim que planejou a morte de Índigo, um dos melhores amigos de Tritão. O rei já estava abalado pela morte da rainha. E se Úrsula pudesse deixa-lo sem os amigos de confiança, a mente dele se tornaria ainda mais fácil de enfeitiçar.

A filha de Índigo era uma sereia sem graça e sem encanto algum. Uma garotinha bobinha que se escondia pelos cantos por trás de lábios finos e cabelos sem vida. Tão logo soube da extensão dos poderes de Úrsula, veio pedir para ser transformada na mais bela sereia de todo o mar.

Querida Millie, eu posso ajudar você. Mas toda magia tem um preço.

Úrsula colocou um punhal nas mãos dela. E prometeu-lhe toda a beleza do mundo por toda a eternidade se ela lhe fizesse um sacrifício à altura. Os olhinhos assustados da sereia se transformaram em determinação. Quão fácil era manipular uma mente já enfraquecida por um desejo.

A vida de quem mais ama pela beleza eterna.

E teria conseguido. Millie teria matado o próprio pai só para se sentir aceita e desejada. Mas ela mostrou-se uma garotinha fraca e no último momento, a coragem lhe faltou. E claro, ela contou toda a verdade para o seu pai.

Quando soube por Índigo o que acontecera, O Rei Tritão chegou ao limite. Dizendo-se cansado de suas manipulações, expulsou-a da corte e Úrsula se viu obrigada a ficar num pedacinho abandonado do mar.

Mas isso foram anos atrás. Agora o destino lhe apresentava uma chance para se vingar e conquistar seus objetivos. A filha mais nova do Rei Tritão. A pequena sereia, Ariel.

Úrsula observou a sereiazinha enquanto a curiosidade dela sobre os humanos aumentava a cada dia. Se o rei soubesse que sua filha e a Bruxa do Mar tinham tanto em comum.

E então, Ariel se apaixonou pelo príncipe. Uma tempestade e um naufrágio foram o necessário para deixar a princesa encantada. A Bruxa do Mar não teve que fazer nada além de esperar. Quando Tritão, como sempre, deixou seu temperamento subir-lhe a cabeça, a pequena sereia veio ao seu encontro.

E Úrsula, quase uma santa, ofereceu a sua ajuda. Era o que ela fazia de melhor. Ajudar pobres almas desafortunadas. Não era sua culpa se essas pobres almas não queriam pagar o preço devido. Magia nunca era de graça.

Ariel ganhou pernas e Úrsula ganhou sua voz. No pôr do sol do terceiro dia, seu plano chegaria ao fim. A pequena sereia não conquistaria o príncipe e seu querido pai faria de tudo para salvá-la. Inclusive entregar sua coroa.

Estava na hora de Úrsula se transformar novamente. Vanessa retornaria a superfície. E com a mais bela voz de todo o oceano, enfeitiçaria e se casaria com o príncipe. E depois, todos os seres do mar estariam a mercê de seu poder. Rainha na terra e no mar, quem diria? No final, ninguém além dela estaria feliz.

Ah, pobres corações infelizes!



926 palavras. 

Corações InfelizesWhere stories live. Discover now