Geni

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Andando no corredor, ela sentia o velho a seguindo com olhos de sanguessuga. Ele era doido para ter uma parte dela, sabia bem. Se esgueirando para fora de casa perto das seis, o horário em que ela costumava voltar para casa, usando qualquer coisa como desculpa. Fumar um cigarro, jogar o lixo para fora, regar a planta já morta ao lado do capacho.

Não tinha certeza do nome dele. Flávio, talvez. Fabiano. Algo com F, mas em sua mente era sempre o velho fedido.

Era o pior dos fedores: o do preconceito.

Estava sempre a encarando, em parte com desejo e em parte com nojo. Dava para ouvir a sua mente brigando com ele.

Nossa, ela é tão gostosa.

Porra, seu pau está crescendo enquanto olha pra uma travesti?

Olha essa bunda.

Ela tem um pau.

Mas é tão gostosa.

Tirou a chave do bolso enquanto pensava que, com certeza, aquele velho traía a esposa igualmente velha sempre que podia. E a velha provavelmente sabia, mas fingia que não. Ah, é assim que os casamentos duravam: com traições e falta de diálogo. Foi só o jovem moderno ousar discutir relações que bum! Os casamentos não duram mais.

Sozinha, com o silêncio dali, jogou a bolsa no sofá vermelho, bem em cima da mancha suspeita que habitava aquele tecido desde que o viu. Conseguiu ganhar um desconto no móvel usado justamente pela mancha.

A aposentadoria por invalidez dava uma boa grana, mas não queria gastar o que não precisava. Era ela por ela, apenas. Não era mais o filho precioso que estava no exército servindo o país e dando orgulho para seus pais.

Sentada, agora sem calça, tirou a prótese da perna esquerda. O coto estava doendo. Passou o dia todo em pé, andando pela cidade. Queria conhecer o lugar. Estava ali há apenas alguns meses. Três estados de distância de onde nasceu e onde toda a sua família estava.

Normalmente, teria ficado horas na creche comunitária. As crianças gostavam de quando tia Cecília lia para elas. Algumas se interessavam mais em seu pomo de Adão ou na prótese da sua perna, é verdade, mas a maioria delas só corria até ela, a abraçava e dizia Tia Cecília, tia Cecília, lê a história da Branca de Neve hoje?

Mas algumas mães reclamam. Um homem vestido de mulher lendo para minha filha? Que perigo.

Então ela foi educadamente avisada de que não era mais precisada ali.

Sair pela última vez da creche deu a mesma sensação de quando saiu da casa de seus pais.

Por quase um ano, depois de ter a perna explodida, foi no antigo quarto que usou em sua adolescência que descansou. No início não sentindo nada além de dor e angústia, depois, acordada a noite inteira sem ter como resolver uma coceira no dedo do pé porque esse pé em questão não estava mais junto à seu corpo. Até que, enfim, a dor não estava mais ali e já estava acostumada a ter seu cérebro pensando que ainda existia algo daquele joelho para baixo.

Por vezes, ficou de olhos fechados, fingindo coçar o que faltava de seu corpo para dar algum descanso para aquela sensação horrível de membro fantasma.

Nessa época sua mãe ainda se importava com ela. Seu pai ainda não a tinha deserdado.

Foi numa tarde de quinta-feira que enfim, decidida a ser Cecília e não a cópia mal feita do que queriam que fosse, ela saiu daquela casa, meio mancando, apenas com uma mala e um vaso de um cacto.

Entrou por aquela porta como uma heroína de guerra. Seu pai dava tapinhas em seu ombro e dizia como estava orgulhoso. Arriscar a vida pelo país é uma coisa e tanto. Sua mãe fazia sopa de legumes e servia seu prato, mesmo depois de estar com a prótese e conseguir andar. Seu irmão sempre citava seu nome perto dos amigos. Foi só quando, enfim ousou fazer algo por si mesma, deixou de ser um orgulho.

Virou uma aberração, um erro, um desgosto.

Sua mãe passou a receber ela com um verso bíblico. Seu irmão não olhava em mais em seus olhos. Envergonhado, provavelmente. Seu pai foi o responsável de mandar Cecília para fora.

Tinha a sensação de que a mãe não a queria longe, mas esse desejo não foi o suficiente para que impedisse o marido de fazer o que fez.

E agora estava Cecília estava ali.

Móveis de segunda mão, aluguel pagando um lugar minúsculo de quatro cômodos, o cacto solitário na janela, a TV com a tela trincada, apoiada em uma pilha de livros velhos, vários papéis jogados pela casa, todos com desenhos que fazia para fugir da própria mente e se ocupar, as embalagens de comida congelada perdidas pela casa.

Mesmo sozinha, Cecília estava certa de que a sua vida nunca esteve tão nos eixos. Finalmente não odiava o que via no espelho. Finalmente não sentia medo do que era. Finalmente era Cecília.

O velho de seu prédio, as mães da creche, seus pais, seu irmão, eram todos grandes hipócritas.

Se não aceitavam Cecília como ela era, então Cecília não os aceitava também. Quem tinha algo para se desculpar eram eles, não ela. Seu maior crime foi existir. Como poderia se desculpar por apenas ser?

Jamais faria isso. Jamais se curvaria aos desejos hipócritas de outras pessoas novamente.

Cecília era Cecília. E isso era seu maior poder.

GeniWhere stories live. Discover now