Prólogo

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IMPORTANTE: Eu reescrevi essa história e estou repostando, mores. Se vocês já leram essa parte, releiam, por favor, e me perdoem pelo incômodo. É a quarentena :)


...

I

O outono no interior do país era verde, fresco e próspero. Dias menores, noites mais longas, colheitas fartas. O paraíso. As tardes ainda conservavam o calor do verão, mas as noites já flertavam com o frio ameno do centro do hemisfério sul. Na República Democrática do Centro-Sul, uma região tinha destaque especial nessa época do ano, seja por sua beleza, seja por sua importância estratégica: o Vale do Éden. Do alto, aviões registravam imagens da massa de água verde azulada e do entorno verde-esmeralda e enviavam para o mundo. Águas bravas, que geravam energia limpa, solos ricos e férteis onde os homens cultivavam alimentos com as próprias mãos, como mandava a sagrada tradição.

A região mais próspera do país estampava documentos oficiais e tinha proteção especial, pois dali saía a força que movia e iluminava o restante do país, as cidades grandes e, especialmente, a capital, Sarai. Lá, milhares de pessoas dependiam diretamente dela, já que, por questões de espaço, não podiam gerar sua própria energia sustentável. Carvão e petróleo não tinham vez no país, muito menos tecnologias nucleares, e a queima de madeira era punível com prisão e multa. Desde que tinha subido ao poder, o Partido Nacional tinha como símbolo a limpeza. A limpeza da criação e das criaturas.

Além de energia, o vale produzia alimentos orgânicos, desejados em todo o país e até fora dele. Frutas, legumes e verduras premiados, de valor considerável. Por isso, adquirir um sítio na região era uma lenda, uma fortuna, um sonho distante para quem não nascia no vale ou herdava, por alguma razão. Não havia corretores de imóveis nos arredores porque nada estava à venda. Mas os negócios, ainda que raros, eram possíveis. Bastava o interessado oferecer algo mais raro e útil que o dinheiro: a liberdade para quem estava querendo simplesmente sumir. Por exemplo, no início do mês de maio, um sítio invejável no coração do vale foi trocado por uma viagem para o estrangeiro, documentos em ordem e um lugar para morar. Sim, havia quem precisasse fugir do vale. Nem só do vale, mas de todo o país. Tudo pronto, o proprietário do sítio anoiteceu e não amanheceu. O comprador estava a par de suas necessidades e soube negociar.

Os vizinhos não gostaram do sumiço do antigo dono do sítio. Não que se preocupassem com seu paradeiro, é que gente nova no vale era, quase sempre, um transtorno. Ainda mais aquele homem que em nada lembrava um homem do campo. Ele tinha pouca bagagem e não trazia nada que se parecesse com um arado, um carneiro ou uma galinha. Só caixas fechadas de cor laranja, sobretudos pretos e chapéus. E cada dia um carro diferente, desobedecendo ao costume de identificação combinada entre os moradores.

— Alguém já avisou na delegacia? — perguntou uma senhorinha, insatisfeita com a quebra do padrão local. A vida era muito boa para ser perturbada por sujeitos de sobretudo preto. — Esse tipo deve ser um vagabundo.

— Ele está bem vestido, vó. Vamos esperar. Talvez ele vá trazer o pai, o tio.

— Não sei não, Antônio. Esse aí vai bem aprontar. Como ele comprou esse sítio? E cadê Armandinho? Tanto tempo que Armandinho não vem aqui. Qual foi a última vez que você falou com ele?

O neto desconversou. Ele mesmo tinha proibido o vizinho de frequentar sua casa. Armandinho vivia sozinho e era muito dado a simpatias, as autoridades poderiam suspeitar da amizade que eles tinham.

Vencido pela curiosidade, Antônio ousou ir até a entrada do sítio quando seu novo vizinho, o desconhecido de sobretudo preto, barba e óculos escuros, chegava num carro igualmente escuro. O homem saiu do carro para abrir o portão emperrado, e Antônio aproveitou para puxar conversa.

— Bom dia, novato! Tudo bem? Eu moro aqui perto...

— O que veio saber? — perguntou o homem, com ironia. — Tenho certeza de que você veio buscar informações.

Antônio ficou desconcertado com o afronte do indivíduo.

— Não! É que... bem... você vai continuar o cultivo de inhame do Armandinho?

— O que é inhame? O que é Armandinho?

Antônio não desistiu.

— Então vai investir em carneiros? É o melhor bicho para essa altitude.

— Talvez sim, talvez não.

— Como é mesmo o seu nome?

— Victor.

— Victor! Victor de quê?

— Victor. Só Victor. Até breve, vizinho!

Com um sorriso, Victor entrou no carro e fez o vidro escuro subir. Antônio afastou-se para dar caminho, aborrecido. A avó tinha razão. Aquele homem podia não ser um vagabundo, mas boa coisa não era. Se não ia plantar nem criar animais, o que ele estava fazendo no vale? E o que teria acontecido com seu amigo Armandinho? Ele não tinha motivos para vender sua propriedade para um homem daquele tipo. Tinha alguma coisa errada.

Tinham sido dias de muita chuva. O sítio de Armandinho, agora pertencente ao "Victor", estava tomado por mato. Mesmo os moradores mais permissivos estavam prestes a concordar com o aviso à delegacia local. Caixas laranja continuavam a chegar, mas nenhum animal de cria ou tração, nenhuma ferramenta. Estaria o Victor transformando aquele solo sagrado em área de lazer para desocupados? Não podia ser! A palavra lazer tinha um caráter pejorativo e os moradores denunciavam qualquer iniciativa do tipo. Força e alimento, era essa a missão do vale. Naquela noite chuvosa, durante o jantar, se chegou à conclusão de que a delegacia deveria ser avisada da presença de Victor, afinal, ela estava ali para manter a ordem e a funcionalidade da região. Aquele monte de mato era uma mancha de sujeira que não deveria ter acontecido.

O volume de chuva que caiu durante a noite fez com que os moradores olhassem com receio para os paredões da represa principal. O barulho das águas que desciam das comportas, agora escuras, era assustador. Pareciam trovões. Alguém comentou que ela apresentava rachaduras, e então Victor foi momentaneamente esquecido.

— Trovoadas? — perguntou a velha ao neto que receava sair com a enxada. Eram nove horas da manhã e a tempestade tinha acabado. O céu permanecia escuro.

Do alto de um morro, outro agricultou sobressaltou-se. Aquele estrondo... teria sido um trovão? Ele não tinha visto raios no céu nublado. Seus olhos se voltaram para o mundo de água represada. Havia rachaduras no dique, mas, dias antes, eles não pareciam tão grandes. O que era aquilo?

Então a terra tremeu. Parou e tremeu de novo. Dessa vez o estrondo foi maior. Antônio soltou a enxada e segurou as mãos da avó. Latas caíram e os vidros das janelas se partiram e milhares de cacos. A casa ficou de pé, mas não muito longe, uma montanha de terra e concreto se liquefez, e uma avalanche começou a descer o vale, primeiro em câmera lenta, mas acelerou à medida que aumentava a declividade. Nenhuma barreira sobrava pelo caminho. Em pouco tempo, a avalanche chegou a outros diques e os rompeu, seguindo o curso normal do rio. Vários quilômetros abaixo, estava a cidade, a pequena Canoa Velha. Vinte mil prósperos moradores, que podiam não saber o que estava acontecendo.

Em choque, o agricultor assistiu à cena lá do alto. Estava imóvel, mas queria fazer alguma coisa. O que aconteceria quando a água chegasse à cidade? Como avisar às pessoas para que saíssem de suas casas? Então ele se lembrou. O comunicador! Felizmente, como líder comunitário, ele tinha um comunicador, e poderia avisar as autoridades. Tremendo e falando aos trancos, ele conseguiu avisar à delegacia. O polícia que atendeu demorou a acreditar. Explosão? Ele pensava que tinha sido um trovão. Com a sensação de que tinha feito o que devia, o agricultor pôs o comunicador de volta na cintura. Olhou para o dique desfeito, como se não acreditasse. Por fim, ele coçou a cabeça.

— Era mesmo um absurdo um volume de água tão grande — disse ele, para si mesmo. — Mas por que o estrondo aconteceu antes?

...

Continua...

O rei está morto (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora