capítulo único

12 1 1
                                    

"Enxugue os olhinhos marejados, meu amor", ele disse, rasgando a madrugada em suas tentativas de me tranquilizar. Fora o cochilo que eu tirei e o pedacinho de tarde que passei com Gabriel, o dia tinha sido pesado demais nos meus ombros. Por conta dos comentários de um professor - provavelmente feitos sem a intenção de me atingir diretamente -, passei boa parte do dia pensando que não me esforço o suficiente, com as cobranças me agarrando pelo pé, e sentindo que o quebra-cabeças que minha mente fez pra mim mesma estava bagunçado demais pra estar perfeito. Esse pensamento é algo meu... Tanto ele quanto a alta carga emocional que carrego, além do gosto pela História, por Folclore e a Teimosia.

Eu sempre fui uma criança muito ligada à minha infância, e ainda hoje continuo sendo. Mas mesmo nostálgica, sempre "pensando pra trás", desde pequena carrego a mania de encarar o futuro nos olhos e perguntar-lhe o que faço com o presente que tenho nas mãos e se o estou usando bem. Essa mania é a culpada pela escolha que fiz, aos dez anos, sobre a profissão que queria seguir: professora de História. Curioso, porque ela toca nos dois aspectos que levo comigo a todos os lugares: o pensar "nostálgico", uma vez que a história (em muitos casos) olha para trás, e o questionar do futuro, com as decisões que faço e as dúvidas que me afligem.

Também é a mania de fitar o futuro que faz com que minha vida seja uma constante escalada, muito marcada pela competitividade e pelos sentimentos oriundos dela. É também por isso que sinto ciúmes; que sou tão metódica e busco estar sempre organizada (a organização deriva da busca pelo não esquecimento das coisas e pela necessidade de saber onde tudo e qualquer coisa se encontra nos espaços onde convivo); é por conta do futuro que tento ser cuidadosa no trato com as pessoas; que me preocupo tanto com como serei vista pelos outros; e, por fim, é por conta das trocas de olhares com o que virá que, às vezes, acabo deixando que a ansiedade me agrida com olhares brutos e o dedo acusatório com que aponta para mim.

Mas não é só o futuro que acaba por pintar algumas características em meu espírito; o passado também o faz demasiadamente. É por conta dele que me sinto tão ligada à minha família e a meus ancestrais, à minha cultura e ao lugar de onde vim. É por conta dele que minha criança interior ainda vive, desperta e ativa, e brinca com minha curiosidade, com meus olhos que a tudo esquadrinham e com o oceano de sentimentos que guardo em um baldinho de praia.

E embora só tenha falado dos dois antagonistas - o que já passou e o que virá -, também convivo amigavelmente (na maior parte do tempo) com um companheiro de ambos, chamado Presente. Embora os outros dois tomem um considerável espaço na saleta da minha vida, o Presente ainda se encontra lá, escrevendo com canetas coloridas em um caderno que, sempre que as folhas são completadas, tem-nas arrancadas imediatamente, sem rezas ou choro que reverta o acontecido.

É no Presente que pago o preço de andar na Montanha Russa da minha autoestima, com seus altos, baixos, giros e poucas linhas retas, que me sacodem e mexem sem parar. Também é nele que observo tudo que interessa à curiosidade de minha criança do passado; que tenho os sonhos ruins e bons que decoram a minha realidade e que são, ainda no Presente, contados, recontados e escritos. É no agora que sinto os efeitos do meu coração e mente ansiosos, atribulados tanto por feridas criadas no Passado e não curadas pelo tempo, bem como pela dor antecipada de desesperos do que ainda não veio. É no Presente que bato o pé sobre o acredito, mesmo que o Futuro, imprevisível que é, mostre que meu coração e ideias instáveis são as constantes que me movem.

É no Presente que escrevo agora, e é o Presente que escreve em mim, no caderno com as páginas efêmeras, que tanto mudam e permanecem as mesmas.

Enxugo os olhos marejados, como Gabriel disse, sabendo das tantas vezes que já o fiz e das outras tantas que precisarei fazê-lo.

E sei também que, apesar do que fui, do que sou e do que serei, tenho a certeza - efêmera, talvez - de que não me encontro em um único tempo, em um único contexto. Sou uma viajante de mim mesma, que sorri e sofre com os tempos verbais escritos no caderno de minha própria história.

A ViajanteWhere stories live. Discover now